quarta-feira, 5 de novembro de 2025

O gol 1001 de Pelé, pelas crianças, não valeu, Ruy Castro _FSP

 No dia 19 de novembro de 1969, Pelé fez, de pênalti, contra o Vasco, no Maracanã, seu milésimo gol. Correu para as redes, pegou a bola, içaram-no aos ombros e, no que lhe apontaram um microfone, dedicou o gol às crianças pobres do Brasil. O Pasquim, semanário de oposição recém-criado e cuja única arma possível contra a ditadura era o deboche, não o perdoou. Zombou de sua frase, classificando-a de piegas e alienada —esperava talvez uma declaração contra o AI-5—, e fez com que ele se arrependesse pelo resto da vida do que havia dito. Só que Pelé estava certo.

Em 1969, talvez as crianças a que se referia fossem os brasileirinhos pobres de 15 anos, idade com que ele chegara ao Santos e se tornara Pelé. Suponhamos que, em 1989, vinte anos depois do gol, aqueles garotos já tivessem seus filhos de 15 anos. E que, em 2009, estes já tivessem seus próprios filhos de 15 anos, netos daqueles para os quais Pelé chamara a atenção. Pois, dentro de quatro anos, em 2029, poderemos ter a terceira geração das criancinhas de Pelé, bisnetos delas, e também com 15 anos.

Ou não, porque a cadeia talvez haja se quebrado há muito. Quantos nesses 60 anos não terão sido presos, mortos ou apenas desaparecido no vasto underground brasileiro de deseducação, fome, doença, exclusão, violência, famílias destroçadas, falta de oportunidade profissional ou, por excesso de oferta, o crime? Ou todas as opções acima?

Não se percebem muitos maiores de 30 anos na legião dos que hoje assaltam nas ruas, guardam as bocas de fumo ou trocam tiros com a polícia. É como se, tendo passado dessa idade, eles se reservem para funções mais seguras, de chefia ou gerência. Sabem que não faltarão contingentes de garotos para as atividades de frente, como as de soldados e vapores. Os números só agora começam a aparecer, mostrando que estes meninos formavam a maioria dos corpos estendidos no chão na semana passada, no Rio.

Naquela noite de 1969, Pelé não fez apenas seu gol 1.000. A frase foi seu gol 1.001. Mas só o milésimo valeu.

Pelé comemora seu milésimo gol - Reprodução

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