Quase metade do país, pelo menos neste momento, não consegue perceber o alcance histórico do que ocorreu no Supremo Tribunal Federal no último 11 de setembro . Há muita raiva política no ar, há a convicção disseminada de que se tratou de mais uma batalha na guerra entre dois lados e uma enorme vontade de revanche. Triste, mas natural: nas atuais circunstâncias políticas do país, dificilmente as coisas poderiam ser vistas de outro modo.
Mas a percepção pública não pode obscurecer os fatos. E o fato fundamental é que 11 de setembro de 2025, cedo ou tarde, entrará para a memória nacional como um dos dias mais decisivos da curta e intermitente história da nossa democracia.
Permitam-me colocar as coisas em uma perspectiva familiar, para defender o ponto de vista que acabo de enunciar.
Meu pai nasceu em 1922. Quando a ditadura do Estado Novo começou, em 1937, era um adolescente de 15 anos. Tinha 42 quando se iniciou a ditadura militar e 63 quando ela terminou. Em 73 anos de vida, atravessou duas ditaduras —foram 29 anos sob regime autoritário em sentido estrito. Se acrescentarmos o período de 1930 a 1934, após a deposição de Washington Luís, sem Congresso e com a Constituição suspensa, chegamos a 33 anos sob autoritarismo. Mais da metade da vida adulta de meu velho transcorreu sob regimes autoritários. É uma imensidão.
Minha mãe nasceu em 1937. Quando oficialmente começou a ditadura deVargas, tinha cinco meses de idade. Em março de 1964, tinha 26 anos. E, por muito pouco, aos 85 anos, em 2022, não experimentou a sua terceira ditadura. Em que democracia estável tem cabimento uma pessoa viver uma "trinca de ditaduras" no decurso de uma vida?
Ditaduras podem parecer abstrações distantes, sobretudo depois que passam. O mesmo acontece com muitas experiências traumáticas —tragédias, guerras, epidemias. A gente ativamente se empenha em não lembrar, para não reviver a angústia e a dor. As marcas deixadas pela pandemia de Covid, por exemplo —os mortos na família, o isolamento das pessoas queridas, a ansiedade sobre o futuro—, já parecem remotas, embora tudo tenha acontecido há tão pouco tempo. É mais suportável não remexer nisso para não sofrer de novo.
Só quando encarnamos essas abstrações na vida de pessoas concretas é que podemos ter uma noção do que realmente significaram.
As novas gerações, que chegaram à idade adulta em plena expansão mundial dos regimes democráticos e da ideia da democracia como valor universal, costumam se enganar ao pensar que este é um regime quase natural, parte da paisagem do mundo, o destino inevitável da civilização. A minha experiência familiar me ensinou o contrário: o normal, no Brasil, foram as ditaduras e as tentativas de golpe de Estado.
A democracia é que tem sido a excepcionalidade, um intervalo sempre provisório entre um golpe e outro. Não vivemos propriamente períodos autoritários interrompendo a democracia, mas breves períodos democráticos entre longos ciclos de autocracia.
Duas, três ditaduras no arco de uma vida —e a sensação de que a democracia pode ser interrompida a qualquer momento, porque boa parte do sistema político e uma multidão de brasileiros não fazem a menor questão dela— é um absurdo. Nada disso é compatível com um projeto de civilização nem com os valores que julgamos cultivar.
Uma geração inteira presenciou o braço pesado do autoritarismo arrebentar a democracia várias vezes no século passado. Viu autocratas exigirem ser chamados de revolucionários. Viu o ditador de ontem voltar a ser eleito pelo voto popular sem jamais responder por seus crimes. Viu anistias e "tentativas de reconciliação nacional" para ditadores virarem incentivos para golpes futuros. O que nunca viu foram generais, almirantes e autoridades de alta patente sentados no banco dos réus, submetidos ao devido processo e condenados por golpe militar. Eu próprio nunca tinha visto um ex-presidente golpista, com enorme apoio popular, chamado a responder por seus crimes e condenado por eles.
Isso levou uma vida para acontecer. A geração do meu pai sequer pôde assistir a algo assim.
Então, me desculpem os que enxergam o julgamento da semana passada apenas como mais um episódio da guerra entre facções políticas: para a minha geração, e da perspectiva da nossa sempre precária democracia, o 11 de setembro foi, sim, um dia de cair no choro.
Foi o renascer da expectativa de que a nossa experiência democrática deixe de ser apenas intervalo entre autocracias, para se tornar, enfim, o modo como nós, brasileiros, escolhemos viver.

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