quarta-feira, 17 de setembro de 2025

A ANISTIA DE 1979 , Alexandre Marcos Pereira, in APMP

 É curioso como a história pode ser convocada como álibi — e não como memória. A anistia de 1979 foi a dobradiça que permitiu abrir a porta enferrujada do regime; não absolveu o arbítrio, tampouco o transfigurou em virtude. Foi um gesto político situado num processo de distensão: antes dela, a Emenda Constitucional n.º 11, de 13 de outubro de 1978, revogara o AI-5 e reabilitara garantias como o habeas corpus. Só depois veio a lei que concedeu anistia ampla (embora controversa) e encarreirou a transição para a democracia. Pôr na mesma balança esse contexto e o impulso de apagar penas de quem atentou contra as instituições em 2023 é não apenas erro de proporção: é desonestidade de método.

Nos anos de chumbo, a caneta suspendeu direitos, fechou o Congresso, cassou mandatos, normalizou a exceção. O AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, era o coroamento jurídico do silêncio forçado. Sua revogação não limpou o passado: apenas desarmou a máquina que o reproduzia. A anistia, sancionada em 28 de agosto de 1979, foi o passo político que se seguiu — parte de um pacto social e institucional que, certo ou errado em seus contornos, mirava a superação do estado de exceção e a reinstituição das regras do jogo. Não houve ali uma turvação entre crime comum e “patriotismo performático”; houve a decisão de fechar um ciclo autoritário e reabrir a vida constitucional. 


Corta para o presente. Em 8 de janeiro, o que se viu foi a tentativa de golpe em versão faroeste digital, com botas na gramática da Constituição e selfies sobre cacos de vidro. Dois anos depois, o país tem centenas de condenações — gente real, com nomes e processos, julgada por um tribunal que existe exatamente para ser o guardião do texto que os invasores quiseram rasgar. O que alguns chamam de “excessos punitivos” é, na verdade, o exercício — sujeito a reparos e recursos, como manda o rito — da jurisdição constitucional. O arco é outro, o cenário é outro, o propósito é outro: lá, desmontar um aparelho de exceção; aqui, reafirmar a vigência das regras que impedem sua volta. 


A retórica da equivalência — esse velho truque de ilusionismo — funciona assim: primeiro, embota-se a diferença entre uma ditadura que esvaziou o Estado de Direito e um Estado de Direito que processa quem o atacou; depois, chama-se “pacificação” o nome novo da impunidade. No palco, alguns termos trocam de roupa: “anistia” vira “conciliação”, “anomia” se fantasia de “liberdade”, e a velha indiferença moral aparece penteada de “moderação”. Mas o figurino não engana quem conhece o enredo. 

Há, claro, quem prefira o conforto das linhas borradas. É tentador: comparar 1979 com agora dá ao delinquente um verniz de personagem histórico que nunca foi; transforma o réu recente em “ator de transição”, como se quebrar vidraças e destruir patrimônio público fosse etapa necessária de amadurecimento institucional. O que se pretende, no fundo, é pedir ao calendário que absolva o Código Penal. Só que tempo não é absolvição; é contexto. 

Há palavras que, quando deslocadas, perdem a espinha: “paz”, por exemplo. A paz da democracia não é a paz do esquecimento; é a paz do devido processo. O Brasil, com todos os seus tropeços, já aprendeu isso. Foi preciso revogar o instrumento mais sombrio do regime e, só então, discutir a anistia — parte de um arranjo político complexo, pressionado por mobilização social e pelo cansaço do autoritarismo. Hoje, inverter a flecha causal para recauchutar a impunidade é como tentar começar um livro pelo epílogo e exigir que a história faça sentido. Não faz. 

O que está em jogo, afinal? Não a dosimetria perfeita (sempre debatível), mas a gramática do pacto constitucional: eleições contam; instituições existem; violência tem responsabilidade; mentira pública cobra juros. Chamar a responsabilização de “revanchismo” é um modo esperto de inocentar o ataque à casa de todos. E repetir que “anistiar é pacificar” é esquecer que, sem a restauração prévia das garantias, anistia vira só cortina de fumaça para o próximo incêndio.

 A crônica, se pudesse, terminaria num banco de praça, com gente lendo jornal e crianças correndo, como nas páginas serenas de um domingo qualquer. Mas a serenidade democrática dá trabalho: exige memória específica, nomes próprios, datas definidas. Em 1978, revogou-se o AI-5; em 1979, promulgou-se a anistia; em 2023, houve uma tentativa de ruptura filmada ao vivo; de 2023 para cá, o Judiciário fez o que a Constituição manda: julgar. O resto é ruído interessado, pregação de esquina que confunde megafone com razão. Se há um ponto de contato entre as duas épocas, ele mora na lição negativa: toda vez que o país aceitou “atalhos” — um ato institucional aqui, uma equivalência conveniente ali —, pagou com décadas de silêncio e medo. Hoje, o preço que se pede é outro: paciência com o rito, atenção às provas, debate público sem amnésia. E a certeza de que a benevolência, quando confunde vítima e agressor, não é virtude cívica: é desistência. Por isso, não: não cabe no mesmo quadro a anistia de 1979 e a proposta de varrer para debaixo do tapete as responsabilizações de 8 de janeiro. Uma foi dobradiça para a abertura; a outra seria fratura exposta no Estado de Direito. A história, quando convocada como testemunha e não como cúmplice, sabe distinguir. E é nessa distinção — firme, mas sem ódio — que a democracia encontra, de novo, a sua voz. 




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