quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Fernando Cássio - A burla como resistência e como sintoma na educação paulista, FSP

 Fernando Cássio

Professor da Faculdade de Educação da USP, integra a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

editorial "Tecnologia no ensino de SP exige cuidados" (4/9) sugeriu que os alunos da rede estadual de São Paulo teriam desferido um "ataque hacker" contra as plataformas digitais que hoje centralizam toda a sua vida escolar.

A terminologia usada é imprópria, pois ataques organizados a computadores almejam o cometimento de crimes. Já o emprego de scripts para cumprir tarefas em plataformas, após login dos próprios alunos, é uma forma orgânica de resistência ao tecnossolucionismo que transformou a educação pública paulista em um paradoxal "ensino a distância presencial".

O governador, Tarcísio de Freitas, e o secretário de Educação, Renato Feder
O secretário da Educação, Renato Feder (à esq.), e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas - Flávio Florido - 3.fev.2023/Seduc-SP

Quando apenas o tempo de uso das plataformas era monitorado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, os estudantes simplesmente colavam ou respondiam às tarefas com caracteres aleatórios. Agora, com o cumprimento das tarefas sendo monitorado com base nos "acertos" (ignorando o erro, ponto de partida para o aprendizado), os scripts são chamados para o trabalho.

Os alunos mais habilidosos nos aplicativos usam o conhecimento a seu favor, vendendo aos colegas um "serviço" de preenchimento de plataformas. Isso deve orgulhar o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), que esvaziou o currículo científico do ensino médio para enxertar aulas de empreendedorismo juvenil.

Se uma ferramenta pedagógica se afasta dos processos de ensino e aprendizagem e torna-se um fim em si mesma, os alunos a tratarão de forma burocrática e acharão formas de abreviar o tédio e as pressões.

Reconhecer que o uso de tecnologias na escola é inevitável (uma obviedade!) não pode levar à afirmação condescendente, feita pelo editorial, de que as "novas políticas nesse campo decerto precisam de algum tempo para mostrar resultados". Na educação, processo e resultado são inseparáveis.

Ademais, a dicotomia insinuada entre entusiastas "do uso de ferramentas digitais em variados campos do ecossistema pedagógico" (é este o rótulo dado pela Folha ao secretário Renato Feder) e os que defenderiam simplesmente abolir as ferramentas digitais das escolas distrai o debate público e alivia para o governo Tarcísio.

Não se pode esquecer que o entusiasmo de Feder com as plataformas deriva de seu próprio papel como agente econômico interessado na digitalização do ensino público. Nem que a ideia de "ecossistema pedagógico" pressupõe o reconhecimento das relações objetivas das pessoas com o mundo e também intersubjetivas; logo, não admite uma rotina escolar restrita ao uso de apps, que —como mostrou um estudo recente para o caso paulista— não melhorou a aprendizagem.

Sem um compromisso real do Estado com uma formação sólida para as juventudes, toda plataforma digital é quinquilharia pedagógica fadada à obsolescência.


Sintoma do fracasso de uma política que precisa mudar, a burla generalizada às plataformas não pode ser encarada com moralismo. Cientes de que a "EaD presencial" está piorando a sua aprendizagem, os alunos estão ensinando à cúpula da secretaria que a tecnologia educacional não existe em abstrato, sem escolas e sem sujeitos.

Pedir paciência àqueles que testemunham a obliteração da escola pública que os está formando soa como ofensa.

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