Hora da confissão: sempre que escuto a palavra "polarização" sinto vontade de puxar o revólver. E, quando escuto as explicações para essa polarização, a vontade é sacar a bazuca.
Sim, mil vezes sim: a desigualdade econômica, imigração, redes sociais e seus capangas digitais... tudo isso agravou o tom e o estilo da discussão pública. Mas democracias livres são, por definição, polarizadoras. E é bom que sejam. A nostalgia da unidade é o sonho molhado dos tiranos.
O ódio que hoje corre solto tem razões mais fundas: é um ódio existencial, como se cada eleição pusesse em risco a própria sobrevivência de metade do país. Haverá explicação para esse surto psicótico?
Talvez —e mais racional do que se imagina. O diplomata britânico David Frost, escrevendo no Daily Telegraph, oferece a hipótese mais convincente que conheço para o pensamento binário que domina a espécie: globalistas contra nacionalistas; "fascistas" contra "comunistas"; e, no contexto britânico, partidários da União Europeia contra defensores do brexit.
É o Estado, estúpido! Houve um tempo em que o governo se ocupava das funções soberanas (justiça, ordem interna, defesa), tentando ainda fornecer serviços básicos à população. O Estado não estava em todo lugar, mas tentava estar onde deveria.
Isso deixava algum oxigênio para os indivíduos, que podiam tocar suas vidas sem a sombra permanente do Leviatã.
Não mais. Vivemos em "Estados totalizantes" (não confundir com totalitários), que se expandem muito além de suas funções específicas. Não é só justiça ou segurança. Não é apenas saúde ou aposentadoria.
É economia, cultura, educação, costumes, vida privada, pensamentos íntimos —nada escapa ao Leviatã e seu desejo de controle social. O oxigênio se foi e ficou a sensação permanente de asfixia.
Moral da história?
Quando tudo depende do Estado, tudo depende do acesso ao poder. Isso significa que tudo é político —até onde a política estatal tradicionalmente não entrava. Como conclui David Frost, o que está em jogo é importante demais para você não ser tragado pelo vórtice.
É uma tese forte, admito, que os números e a história reforçam. Nos últimos 150 anos, os gastos públicos no Ocidente só caminharam numa direção —para cima. Parte se explica por conjunturas (guerras, pandemias) ou por causas nobres (não pertenço à seita dos neoliberais, para quem o Estado de bem-estar é um dos cavaleiros do apocalipse).
Mas o gigantismo estatal não nasceu apenas de boas intenções. Depois da Primeira Guerra Mundial, entraram em cena os "Estados-projeto", para usar o conceito do grande historiador Charles Maier: Estados ativistas que não se limitavam a administrar, mas se lançavam na tarefa de refazer a economia, a sociedade e a própria natureza humana de acordo com um plano ideológico.
No século 19, tivemos projetos de Estado —o Brasil pós-Independência ou a unificação alemã com Bismarck são exemplos clássicos dessa construção institucional.
O "Estado-projeto" é outra coisa: pressupõe a existência desses elementos (população, território, soberania, governo), mas vai muito além. Sua ambição é remodelar o cidadão com os instrumentos do Estado.
E, para desespero dos críticos, Maier lembrava: não é só coisa de ditadura. Democracias liberais também podem ser "Estados-projeto", descontada a violência. O que define é a intenção: a decisão política de mobilizar o Estado para moldar o futuro.
De vez em quando escuto amigos reclamando da onipresença da política em suas vidas. Entendo o cansaço, a náusea mesmo, com a gritaria sem fim.
Mas essa gritaria não é tão irracional: a política, de fato, infiltra-se em tudo —até na intimidade. Quem zomba de progressistas (ou conservadores) que juram nunca namorar alguém do "outro lado" ignora que isso é apenas a consequência lógica do nosso tempo.
Uma eleição tampouco é apenas uma eleição —um mecanismo pacífico de trocar governantes sem derramamento de sangue, como dizia o filósofo. É a hora em que recursos colossais e instrumentos tentaculares do Estado mudam de mãos. E, se isso não é uma ameaça existencial, o que é?
A polarização poderia ser saudável —se o Estado também fosse. Mas, para tanto, seria preciso devolver o Leviatã às suas funções próprias e limitadas, longe dos delírios dos "Estados-projeto".
Caso contrário, marcharemos de eleição em eleição —até chegarmos à última.
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