Existem três formas de o poder político anular condenações proferidas pelo Judiciário: a anistia, a graça e o indulto. A anistia é concedida pelo Congresso Nacional e anula as penas do crime e todas as suas consequências. O indulto e a graça são benefícios concedidos pelo presidente da República, o indulto para pessoas indeterminadas, e a graça para indivíduos de forma particularizada. O Brasil já teve algumas anistias. Alguns exemplos recentes são a lei promulgada ainda na ditadura militar que anistiou tanto os militares quanto opositores do regime, e a anistia a crimes de evasão de divisas, ocorrida em 2016, mais conhecida como a lei da repatriação de valores no exterior.
Já o indulto é mais comum. Praticamente todo ano, já há muitas décadas, o presidente da República edita o tradicional decreto de indulto natalino, extinguindo penas de quem já cumpriu uma parte da condenação. Alguns crimes ficam de fora, como os hediondos, por expressa proibição constitucional.
Apesar de ser uma decisão política do presidente da República, diversos decretos de indulto foram parar no Supremo nos últimos anos. Começou em 2016, quando o presidente Temer resolveu alterar a fração de cumprimento de pena de determinados crimes, visando beneficiar, ao que se dizia, alguns condenados pela Lava Jato. Nunca ficou clara esta intenção, e muito menos o real benefício que acarretaria a tais réus. Naquele caso, o Supremo decidiu que não cabe ao Judiciário interferir nos critérios de conveniência e oportunidade que embasam a decisão do mandatário da nação.
Isto não quer dizer que não deve haver limites ao poder absolutista do presidente da República para editar indulto. Ainda na década de 90, em um julgado de relatoria do ministro Sydnei Sanches, a corte falava em "critérios razoáveis de política criminal" e, mais recentemente, quando julgou a constitucionalidade do indulto concedido a Daniel Silveira pelo presidente Bolsonaro, assinalou que o indulto não pode ofender a moralidade pública, precisa ser impessoal e não pode haver desvio de finalidade do ato, ou seja, é um ato administrativo sujeito a sindicância como qualquer outro ato estatal praticado em um Estado democrático de Direito.
O indulto não pode ser editado para favorecer amigos, parentes ou correligionários, pois feriria de morte o princípio republicano da impessoalidade e moralidade pública. Tampouco pode se transformar em instância revisional de uma particular decisão judicial. Se o Supremo não pode se imiscuir em atos do Executivo e do Legislativo, a recíproca deve igualmente ser respeitada.
Por esta ótica, o indulto que o governador Tarcísio promete conceder a Bolsonaro caso eleito presidente já nasce morto. Não será um ato de política criminal, mas uma moeda de troca para lhe cacifar nas eleições do ano que vem. É toma lá dá cá. Fere a moralidade pública, sob qualquer ótica que se queira analisar.
A anistia não fica em melhor lençol. O Congresso Nacional não pode legislar para um grupo específico, transformando o poder de legislar em instrumento de revisão judicial de condenações particulares. Em caso que trata de tentativa de golpe de Estado, a questão é ainda mais sensível. Bastaria a maioria parlamentar desejar um golpe que, mesmo frustrado, o golpe nunca seria punido pela possibilidade de autoanistia. O Estado de Direito não teria mais como se defender de insurgências golpistas.
Até mesmo a graça, que é o indulto particular, ou melhor, o indulto concedido a uma pessoa determinada, deve obedecer aos mesmos critérios. Não é por acaso que a graça praticamente caiu em desuso, já que seria muito difícil imaginar uma clemência individual que não tivesse alguma dose de capricho pessoal do presidente da República. Embora tenha chamado de indulto, o que Bolsonaro concedeu a Silveira foi na verdade uma graça, uma espécie de perdão amigo, ato típico de monarquias absolutistas ou de ditaduras (apesar de que Biden fez o mesmo com o filho, pouco antes de deixar o poder...).
Bolsonaro, aliás, abusou da caneta presidencial para beneficiar correligionários. Pouco antes de deixar a Presidência, editou um decreto de indulto natalino que, embora tivesse aparência de coletivo, não conseguia disfarçar que se destinava a favorecer indivíduos facilmente identificados: policiais condenados pelo massacre do Carandiru. O decreto está suspenso por decisão do STF.
Entre anistias e indultos, o bolsonarismo segue sua sina de deslegitimar as decisões do Judiciário, atentando contra democracia e o Estado de Direito. É o golpe ainda em marcha.
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