quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Não me viam como uma pessoa deprimida, diz pastor sobre estigma da saúde mental nas igrejas, FSP

 

São Paulo

Como quase todo paulistano, Júnior Martins tinha uma vida extremamente ativa: empresário da área de automação industrial, professor de teologia e pastor de uma igreja batista. Com o excesso de atividades, veio o descuido com a alimentação e com a saúde e, em 2008, aos 34 anos, a primeira crise de ansiedade.

"Não levou muito tempo para eu entrar num processo depressivo decorrente das circunstâncias da vida e iniciar a medicação. Senti na pele o que já conhecia, ao menos na teoria", diz o pastor.

Lidar com ansiedade depressão não era novidade para Martins. Ele lembra que na sua própria família teve casos diagnosticados, o que facilitou a procura por ajuda com psiquiatra e psicólogo. O que o surpreendeu foi quando compartilhou sua história com a liderança da igreja onde era pastor havia 12 anos.

"Tive uma conversa com a liderança e, por mais que tivesse sido claro que precisava de um tempo, não foram capazes de entender naquele primeiro momento porque eles não me viam como uma pessoa deprimida, com crises de ansiedade", recorda o pastor, que na época não era remunerado pela função.

Um homem está em pé em um ambiente com uma janela em formato de arco ao fundo. Ele segura um livro com as duas mãos e parece estar em uma pose reflexiva. A iluminação é suave, criando um contraste entre as sombras e a luz que entra pela janela.
Pastor Júnior Martins, da Igreja Batista em Vila das Belezas, na zona sul de São Paulo, que sofreu com depressão e ansiedade - Bruno Santos/Folhapress

Martins disse que precisou de seis meses para compreender que a igreja não tinha condições de lidar com sua luta interna e decidiu sair. Ele também suspendeu as aulas de teologia e diminuiu a carga de trabalho na empresa.

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O diagnóstico de Martins entrou para as estatísticas. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 10,57% dos brasileiros com mais de 22 anos tinham depressão em 2019, o ano mais recente do levantamento. Mas não só isso. O diagnóstico também mostra que igrejas ainda não estão preparadas para lidar com casos de ansiedade e depressão de integrantes da sua comunidade e, principalmente, de seus líderes.

Segundo o pastor Vardilei Ribeiro da Silva, da IPI (Igreja Presbiteriana Independente) do Parque Ipê, na zona oeste de São Paulo, que estuda a saúde mental e o suicídio entre cristãos, o tema é um tabu porque em muitas denominações transtornos psicológicos ainda são vistos como falta de fé. E o problema tende a se agravar quando a liderança não está preparada para enfrentá-lo.

Um dos casos que ganhou repercussão recentemente foi o suicídio do pastor Lucas Di Castro, da Igreja Universal do Reino de Deus na Bolívia. Lucas morreu no dia 5 de agosto, aos 35 anos. Ao comentar o caso no Instagram, no dia 8 de agosto, o líder da Universal, o bispo Edir Macedo, disse que Lucas "nunca foi pastor, ele tinha o título de pastor; mas ele nunca foi um homem de Deus". "Não estou nem aí para a morte desse pastor", disse Macedo na mesma live.

A psicóloga Karen Scavacini, CEO, idealizadora e cofundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, diz que o luto por suicídio costuma trazer muitas perguntas, sentimentos de culpa e até de abandono e, por isso, é importante que familiares ou amigos busquem ajuda profissional, caso sintam a necessidade.

"Nesse processo, é essencial que líderes religiosos tenham uma fala de acolhimento e não de julgamento, porque a maneira como a comunidade responde pode aliviar ou aprofundar o sofrimento da família", disse.

Em sua dissertação de mestrado, Silva concluiu que a teologia sozinha, sem uma interface com outras áreas do conhecimento como a psicologia, "não dá conta de um fenômeno tão complexo como as questões de saúde mental e o suicídio". Ele destaca que o tema suicídio está relacionado a um dos dez mandamentos. Segundo ele, o "não matarás" inclui não atentar contra a sua própria vida.

O pastor e sociólogo Valdinei Ferreira, colunista da Folha, lembra que um dos personagens da Bíblia ajuda a explicar o tabu que cerca o tema entre cristãos. Judas, ao entregar Jesus, ficou estigmatizado como traidor e se suicidou. Mas não só isso. "Judas ficou marcado como alguém que cometeu um pecado, não se arrependeu e se destruiu. Ele cometeu uma falta com a qual não soube lidar", disse.

Valdinei ressalta que esse entendimento foi reduzido ao longo do tempo pelo acesso às informações que ajudam a lidar com as faltas, sejam físicas ou emocionais, e que mostram que problemas de saúde mental e o suicídio são multifatoriais.

Para Silva, além de hoje compreender que as questões de saúde mental são decorrência de vários fatores, a igreja também precisa estar preparada para se inserir nesse processo de cura. Em sua tese de doutorado, que defenderá nesta sexta-feira (12), o pastor irá abordar como a liderança da igreja deve se preparar para o acolhimento das pessoas com depressão ou ideação suicida.

"Nós, cristãos, precisamos entender que não é só a leitura do texto bíblico sem profundidade que vai contribuir para que a pessoa supere uma crise de depressão. Pelo contrário", disse Silva. "O líder que só usa a bíblia e acha que ela pode resolver todas as questões que dizem respeito à complexidade da vida mais oprime do que liberta", completou.

Silva diz que em sua tese de doutorado ressalta a figura de Jesus que acolhe e que está o tempo todo olhando para o outro. "Quando nós olhamos para o outro de maneira efetiva e intencional nós encontramos o sentido do viver. Este, inclusive, é um caminho para combater o suicídio", afirmou.

O pastor lembra ainda que a teoria da prosperidade e da fé que determina saúde financeira, emocional e espiritual também contribui para o adoecimento de cristãos em geral, mas principalmente de pastores. Em algumas denominações, pastores são cobrados pela arrecadação de dízimos e por número de batismos, além de terem que agir como super-heróis, sempre à disposição e sem falhas.

O pastor Martins, que entendeu na prática como é sofrer a pressão do heroísmo religioso, vai além. Para ele, a espiritualidade do nosso tempo não contribui com a saúde mental dos cristãos. "Eu acredito que um mundo doente não pode produzir pessoas sãs", afirmou. "Hoje os pastores não são mais pastores. São executivos da fé. Se não fazem sucesso, são considerados fracassados", completou.

Martins disse que a ajuda profissional foi fundamental para sua recuperação um ano e oito meses depois do início do tratamento. "A ferramenta da psicologia foi fundamental para a compreensão das minhas emoções, dos meus sentimentos e para aprender a dizer não", disse Martins, que transformou sua experiência pessoal no livro "A Batalha Silenciosa dos Pastores" (RTM Editora).

Além de ter voltado ao pastorado, Martins também trabalha no aconselhamento de pastores com conflitos emocionais. Ele e Valdinei estarão no debate "Conversas Difíceis", organizado pela comunidade Civi-co e pelo Instituto Humanitas360, em parceria com o antropólogo Juliano Spyer, colunista da Folha.

Com o tema "Religião e o Acolhimento às famílias de quem se suicida", o encontro faz parte das ações do Setembro Amarelo de prevenção ao suicídio e será realizado nesta quinta-feira (11), às 19h, na rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. O evento é gratuito e com vagas limitadas. Inscrições podem ser feita pelo site bit.ly/conversas-dificeis-rsvp.

ONDE ENCONTRAR AJUDA

Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio
Oferece grupos de apoio aos enlutados e a familiares de pessoas com ideação suicida, cartilhas informativas sobre prevenção e posvenção e cursos para profissionais.
vitaalere.com.br

Abrases (Associação Brasileira dos Sobrevivente Enlutados por Suicídio)
Disponibiliza materiais informativos, como cartilhas e ebooks, e indica grupos de apoio em todas as regiões do país.
abrases.org.br

CVV (Centro de Valorização da Vida)
Presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato pelo site e telefone 188
cvv.org.br

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