Darwinistas de plantão, respondam esta: se tudo o que existe na vida serve para alguma coisa "porque é fruto de seleção natural", então o que tem de bom ou útil no fato de a medula espinal machucada não se recuperar sozinha e por isso deixar acidentados paraplégicos e até tetraplégicos, enquanto nervos machucados são perfeitamente capazes de achar seu caminho no corpo e crescer de volta? Hmmm?
O problema em princípio é o mesmo: uma lesão, seja por corte, ferida de bala ou contusão, destrói os cabos —para usar o termo correto, os axônios— que ligam um neurônio aos outros. Um neurônio cujo cabo é destruído é como um computador sem internet —funciona, mas mesmo que saiba o que está acontecendo localmente, não tem como agir sobre o mundo. Desconectado, um neurônio não faz mais diferença alguma para o corpo.
Um nervo é um dos muitos conjuntos de axônios espalhados pelo corpo que o ligam à medula espinal, a parte do sistema nervoso no interior da coluna vertebral cujos axônios por sua vez retransmitem os sinais do corpo ao cérebro. E vice-versa, o corpo se mexe porque o cérebro tem axônios que chegam aos neurônios da medula que por sua vez tem seus próprios axônios em nervos que levam sinais aos músculos. E voilà, o corpo se mexe quando o cérebro manda.
Se um desses nervos pelo corpo é machucado, a parte desconectada do axônio morre, criando o que para o cérebro é efetivamente um apagão naquela parte do corpo. Mas, aos poucos, o axônio cresce de volta, retraçando o caminho de antes, exatamente como um fio elétrico partido que crescesse de volta dentro da capa. É um processo lento, de um milímetro por dia (o que em termos celulares é na verdade coisa pacas!), mas acontece.
Só que dentro da medula, nada feito. Por quê? Se "por quê?" significa "como não?", a resposta foi encontrada 30 anos atrás, quando eu era doutoranda. Dentro da medula, as células gliais lesionadas secretam uma série de substâncias que inibem a extensão dos axônios e ainda por cima formam uma verdadeira cicatriz no local, que age como uma barreira física. E se "por quê?" significa "para que serve não regenerar?", a resposta era... ahn... porque... o risco de neurônios lesionados se reconectarem errado deve ser grande demais para valer o risco?
E aí vem a Tatiana Sampaio, neurocientista de quem eu era colega no Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, e não só teima que deve haver um jeito de contornar esse impedimento local dentro da medula como faz isso com polilaminina, uma substância que todo laboratório que cultiva neurônios tem, e ainda mostra que não há problema nenhum em reconectar axônios dentro da medula lesionada. Muito pelo contrário, o resultado é justamente aquilo que todo mundo sonhava ver, que é uma lesão da medula deixar de ser condenação à cadeira de rodas.
Ou seja, a lógica darwinista que explica tudo o que é e até o que não é com alguma serventia está, mais uma vez, furada. Algumas coisas simplesmente são como são por contingências e limitações físicas ou biológicas. E quando aparece uma cientista obstinada, a história muda —e a gente fica feliz.
Como a polilaminina funciona e como essa descoberta aconteceu é uma história que eu quero contar... assim que a Tatiana responder aos meus e-mails. Tatianaaa, responde aos meus e-mails?
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