Nas eleições presidenciais americanas, nas eleições gerais na Europa e também nas municipais no Brasil há referências ubíquas a um suposto novo fenômeno no eleitorado: a clivagem de gênero (gender cleavage ou gap). O eleitorado feminino agora seria de esquerda, enquanto o masculino de direita. Ocorre que esta tendência não é exatamente nova; ela pode ser observada há pelo menos 50 anos (ou até 70 anos) em muitos países europeus e 30 anos nos EUA. No Brasil é mais recente, mas não apareceu agora.
Quando o sufrágio feminino adquiriu força no período entre as duas guerras mundiais e se generalizou no pós-guerra, a percepção geral era que o voto feminino era conservador. Há evidências nesse sentido para o período entre 1900 e 1955, quando o gap desaparece. Em "The Civic Culture" (1963), o primeiro grande estudo sobre valores e opinião pública, um clássico reverenciado da ciência política, Gabriel Almond e Sidney Verba concluíram que "o comportamento político das mulheres divergia dos homens apenas no sentido de ser mais apático, paroquial e conservador".
Como mostraram Ronald Inglehart e Pipa Norris, em 1970, em países como Alemanha e Itália, o diferencial entre o voto de homens e mulheres —valores maiores entre estas últimas— nos partidos de direita era ainda da ordem de 15%. Na Escandinávia, o viés à esquerda do eleitorado já existia. Mas logo ocorreu um realinhamento em sentido contrário, pelo qual as mulheres passaram a votar predominantemente nos partidos de centro-esquerda ou esquerda. No eleitorado masculino praticamente não ocorreu mudanças: a clivagem de gênero é produto de uma metamorfose concentrada no eleitorado feminino. O que deu lugar a hipóteses rivais sobre quais seriam seus determinantes (que fica para outra coluna).
Nas eleições de 2024 nos EUA, 60% das mulheres com curso superior tendem a se identificar com o Partido Democrata. Este percentual é muito superior nas chamadas geração Y (millenials, aqueles nascidos entre 1981 e 1996) e Z (1997-2010). A superposição de clivagens entre os "brâmanes" (com curso superior) e mais jovens produz bolhas de eleitores à esquerda. Há fortes evidências que a questão é geracional e não relacionada ao ciclo de vida no qual as preferências políticas mudam com a idade (o que também ocorre). Trata-se de tendência nas democracias da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), não se restringindo aos EUA. A principal consequência desta constatação é que esta tendência é estrutural e a clivagem tende a aumentar.
Na Europa, o fenômeno é de fato mais antigo e a tendência à ampliação monotônica do diferencial de votos por gênero podia ser observada na década de 1980, mas ocorreu forte inflexão entre os anos 1990 e 2000. Esta inflexão precede a atual onda populista e ascensão de líderes da direita radical.
No Brasil, as evidências de clivagem de gênero nas eleições presidenciais de 2022 e nas municipais de 2024 são inequívocas e seguem a tendência das democracias da OCDE expressa na rejeição de candidatos da direita radical pelo eleitorado feminino, como ficou claro em São Paulo. Mas clivagem de gênero não implica necessariamente polarização política de gênero. O fenômeno existe muito antes de evidências sobre polarização e, em particular, polarização afetiva.
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