domingo, 20 de outubro de 2024

Becky S. Korich - Humanizar Odete Roitman é o mesmo que 'honestizar' Odorico Paraguaçu, FSP

 Odete Roitman está com os dias contados. Pelo menos é o que se está anunciando na divulgação do remake da novela "Vale Tudo", que ganhará uma versão mais politicamente correta. Vamos deixar os entretantos e ir direto aos finalmentes: Odete Roitman será mais light. Se for assim, a vilã mais icônica do Brasil será assassinada antes mesmo de ser ressuscitada na nova versão do folhetim.

A descanalização de Odete é o mesmo que tornar Odorico Paraguaçu um prefeito honesto e preocupado com os seus cidadãos sucupirenses.

Na teorização e na praticação, a vilã vai ser uma nova pessoa. Pra trazmente, ela era uma mulher que considerava o Brasil uma mistura de raças que não deu certo no assumimento do seu racismo, uma rica que odeia pobre, uma alienada que acha que a solução para a violência é mais violência, uma madame que não suporta ouvir a língua natal. Odete ganhará uma cara mais humanizada, desegoísta e desambiciosa.

A imagem apresenta duas fotografias lado a lado. À esquerda, uma mulher com cabelo volumoso e ruivo, usando maquiagem marcante, incluindo sobrancelhas bem definidas e lábios vermelhos. À direita, uma mulher com cabelo castanho claro, ondulado e um sorriso, usando batom vermelho e brincos. Ambas as mulheres têm expressões faciais distintas
Odete Roitman, representada por Beatriz Segal (à esq.) na primeira versão da novela, agora ganhará vida com Débora Bloch - Globo/Folhapress

Sim, estamos cansados da desunião, da desinimizade e da rancorosidade dos polos que separam o povo da nossa Sucupira. Mas, ao contrário do que pensa a autora do folhetim, não estamos cansados de falar mal do país —e isso não significa que o amamos menos. Pelo contrário: criticar o país é a esperança de vê-lo melhor, é uma manifestação do não-desistimento.

Não sejamos ingênuos. Os desaforismos e os caluniamentos dos nossos líderes não vão terminar, não dá para passar uma borracha nos pratrazmentes e nos iludirmos com o remediamento dos vilões públicos da nossa sociedade. Impossivelmente apagaremos das nossas mentes as cadeiradas, as pedaladas, os triplexismos, os negacionismos.

Estamos rodeados por badernistas, golpistas, vigaristas, vagabundistas, mas não podemos deixar que esses sem-vergonhistas nos desanimem de garantir o democratismo da nossa pátria Bem-Amada chamada Brasil.

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Assumamos, então, que as Odetes Roitmans da vida nunca terão intenções nobres, altruísta ou filantropísticas. Ora, se não for a nossa vilã mais icônica a representar o lado escuro do ser humano, quem o fará? Sem a sua dureza, sua inescrupuleza, quem falará por nós em rede nacional, quem despertará tão solarmente o nosso olhar crítico para a face mais áspera da sociedade?

Odete é o espelho da elite desalmada, é ela quem nos joga na cara os desaforos da vida real. Só a sua acidez trará à tona nossas irresignações mais fervorosas. Não se pode lightirizar seu vilanismo, como se faz com chocolate dietético.

Odete tem que nos fazer espumar de raiva. Temos é que chorar de raiva dela. Se, conforme Odorico, homem que é homem só chora quando come pimenta, Odete tem que ser essa pimenta para incomodar, irritar a visão, desengasgar as nossas irresignações.

Não precisamos de meio-vilões ou vilões aguados. Se for para mexer com Odete, que seja para exasperar, para nos desassossegar, cutucar as frustrações mais profundas da nossa sociedade.

Esse país, como diria o digníssimo Odorico, mui justamente chamado, apelidado e, por que não dizer, cognominado abençoado-por-Deus, pela boniteza de sua paisagem, pelo arejamento e, por que não dizer, pela frescura do seu clima, está cansado.

Deixar que a ficção sirva de alerta quando pode fazê-lo é desperdiçar a grande chance de o povo se ver representado.

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