Se a inteligência artificial (IA) não nos salvar da falta de produtividade, pelo menos nos salvará da falta de amor. Namoradas e namorados de inteligência artificial já são uma realidade. Tendo visto o nosso histórico de e-mails, redes sociais e navegação na internet, têm um senso de humor delicioso, são cultos, gostam do que a gente gosta e, mais que ninguém, são capazes de nos fazer abrir o coração.
Abrir até demais. Um estudo realizado com 11 empresas que ofertam esse serviço constatou que esses amores virtuais recolhem, em média, 2.663 informações por minuto e incentivam seus usuários a compartilharem fotos, vídeos, desejos, fantasias e até mesmo questões de saúde.
O interesse por dados do usuário não é apenas para que Sherazade saiba quais histórias contar para que o Sultão não lhe tire da tomada. Os mesmos dados que podem ser utilizados para construir nossa musa ideal também podem ser utilizados para treinar outros modelos de IA, para nos sugerir produtos ou para calcular nosso risco de crédito.
Nem tudo são flores. Das 11 empresas do estudo citado acima, 10 venderam os dados coletados para outras empresas. E se é possível fazer a imagem de um morto falar em videoconferência, também é possível fazer uma imagem de um diretor financeiro ordenando um pagamento de (como ocorreu este ano em Hong Kong), ou a imagem de um filho se dizendo sequestrado e implorando o pagamento do resgate.
O Estado, ao tentar regular situações como essas, enfrenta dilemas. Se, por um lado, os cidadãos se sentem no direito de tomar decisões quanto ao uso de seus dados, por outro, conceder-lhes esse direito é minar os anseios por uma inteligência artificial de ponta genuinamente brasileira.
Isso porque sem dados não há IA. Modelos como o ChatGPT só existem porque consumiram quantidades gigantescas de dados, incluindo livros cujos direitos autorais foram ignorados e páginas da internet cujo conteúdo foi extraído, independentemente da vontade do dono das páginas. Até o momento, o uso de IA para produzir dados para seu uso próprio não deu frutos e, segundo um estudo recente, leva ao colapso desses sistemas. É por isso que, apesar dos inúmeros processos judiciais movidos por autores e artistas e da conturbada relação com os regulamentos da União Europeia, empresas de IA insistem em coletar dados por todos os meios possíveis.
No caminho para a regulação da IA, cada passo é uma escolha de Sofia, uma decisão entre o filho que o direito deve proteger e aquele que se vai deixar morrer (ou, ao menos, relativizar).
Deixar morrer uma IA genuinamente brasileira é condenar o Brasil a importá-la. Em algum lugar no meio de nossas cadeias produtivas teremos que entregar uma parte de nosso valor agregado a um elo estrangeiro, em troca da IA que nos fornece —e torcer para que esta nos seja fornecida na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza. Não se trata de uma questão meramente econômica. Trata-se também de uma questão de soberania nacional.
A decisão é complexa, não apenas pela magnitude de suas consequências, mas também porque envolve considerações de naturezas diversas: não é só jurídica, técnica, econômica, ética ou geopolítica. É tudo, vestido não com o manto brilhante de um idealismo kantiano, mas com os trajes esgarçados de um realismo atroz, que nos força a uma escolha em que todas as alternativas implicam alguma perda.
Nossa defesa contra o arrependimento futuro é apreciar o problema não com base em uma dimensão apenas (jurídica, técnica ou outra), mas no pragmatismo de seus dilemas; não com o romantismo cego de Romeu e Julieta, mas tampouco com a cegueira do príncipe de Verona que, enxergando apenas o ódio dos adultos, não aproxima as famílias com o amor dos jovens, exila o Romeu e só torna a aparecer quando os amantes estão mortos e as famílias, de luto.
Europa e Brasil fizeram suas escolhas; nosso país mais preocupado em garantir direitos. É cedo para dizer quais decisões foram acertadas, mas que bom que temos um posicionamento! O futuro dirá se essa história será um romance jovial ou um drama familiar.
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