A região do cerrado, especialmente a fatia que abrange Goiás, parte de Mato Grosso, de Minas Gerais e de São Paulo, é considerada a nova fronteira da triticultura brasileira. Ali se desenvolvem algumas das experiências recentes mais promissoras em termos de produtividade e qualidade.
A mudança no mapa da triticultura, tradicionalmente concentrada nos estados da região Sul, começou dentro dos laboratórios da Embrapa, ainda nos anos 1980, onde foram desenvolvidos novos cultivares adaptados ao clima tropical.
Os pesquisadores descobriram que o calor seco do cerrado poderia ser vantajoso para a cultura. Como chove menos por ali, o risco de atrasar a colheita é bem menor —se o produtor perde o momento exato de colher, o trigo começa a germinar na própria espiga, o que pode derrubar o preço e até gerar a perda de safras inteiras.
O calor também aumenta a produtividade. Os cultivares tropicais têm ciclos mais curtos e podem ser colhidos em apenas 90 dias, proporcionando até três safras anuais.
"São os mais precoces do Brasil. Agora estamos testando novos territórios, como estados do Nordeste e Roraima, onde o ciclo pode chegar a 60 dias", afirma Ricardo Lima de Castro, pesquisador na área de melhoramento genético da Embrapa Trigo.
Quanto à qualidade, o trigo tropical tem mais força de glúten. Significa que ele gera uma farinha com maior capacidade de aguentar a pressão gerada pela fermentação, parâmetro cada vez mais exigido pelo setor de panificação, que representa mais da metade do mercado nacional.
"Não se pode mais dizer que o trigo brasileiro não tem qualidade. Comparado com o argentino, temos um padrão até superior, que se equipara aos canadenses", afirma o pesquisador.
Três décadas após as primeiras experiências de plantio, o trigo do cerrado está mais do que consolidado. Dono da Fazenda São Nicolau, em Cristalina (GO), o triticultor Paulo Bonato ficou famoso, em 2021, depois de colher 9,6 toneladas por hectare— um recorde mundial.
A propriedade, a mil metros de altitude, se beneficia do clima mais ou menos regular. Nos seis meses de seca, faz sol durante o dia, com máxima de 28ºC, mas as madrugadas costumam ser geladas, com mínima de 4ºC.
A irrigação é feita com pivô central, que se alimenta da água de chuva acumulada em barragens. Não se desperdiça uma gota sequer —sondas no solo indicam a quantidade exata de água que a lavoura precisa.
Com 480 hectares plantados, Bonato faz rotação de várias culturas de grãos, como soja, milho e feijão. O mês de maio, segundo ele, é a janela ideal para encaixar o plantio de trigo irrigado.
"Finalmente o trigo está se mostrando viável. As quebras de safra na Argentina e a guerra na Ucrânia geraram uma valorização no mercado internacional. Aumentei a área plantada de forma considerável este ano e cheguei a 200 hectares de trigo", diz Bonato.
O trigo também tem entusiasmado os produtores do Cerrado mineiro. Presidente da Atriemg (Associação de Triticultores de Minas Gerais), o engenheiro agrônomo Eduardo Abrahim, sócio da Fazenda Maringá, em Araguari (MG), tem 540 hectares plantados e participou do avanço da cultura em todo o estado.
"Em 2005, Minas colheu 25 mil toneladas de trigo. Em 2023, foram 450 mil toneladas", compara.
No plantio irrigado, que corresponde a cerca de 40% das lavouras do cerrado, a produtividade é alta, embora ninguém tenha conseguido bater o recorde de Bonato —a média é de 6 toneladas por hectare, quase três vezes o que se colhe, em média, nos estados sulistas.
Nas demais áreas, vigora o chamado trigo de sequeiro, que depende 100% das chuvas. Como choveu pouco este ano, com temperaturas bem acima da média, a expectativa é que a colheita seja até 30% menor do que a de 2023. Mas os produtores continuam animados.
Segundo Abrahim, o cerrado já abriga entre 350 e 400 mil hectares de lavouras de trigo, área que, ele calcula, promete chegar a 1 milhão de hectares até 2030.
Mercado não falta. Indústrias, padarias e pizzarias especializadas em fermentação natural demandam cada vez mais as farinhas de trigo com maior força de glúten —e o Brasil ainda não é autossuficiente.
De acordo com Eduardo Assêncio, superintendente da Abitrigo (Associação Brasileira da Indústria do Trigo), o país produziu 9 milhões de toneladas de farinha em 2023, mas consumiu 12 milhões de toneladas.
Os estados do Paraná e do Rio Grande do Sul concentram mais da metade dos moinhos brasileiros, mas até este cenário está prestes a mudar, aposta Abrahim: "Até as empresas de moagem estão descobrindo o Cerrado. Muitas estão investindo aqui."
LINHA DO TEMPO – O AVANÇO DA TRITICULTURA NACIONAL
● Entre 1967 e 1990, a reserva de mercado imposta pelo governo federal manteve o setor estagnado –com garantia de compra de 100% da safra, os produtores só investiram em volume.
● Embora os estudos de tropicalização do trigo tenham começado nos anos 1920, foi só em 1986 que a Embrapa lançou o primeiro cultivar adaptado ao calor seco do Cerrado.
● Em 1990, o governo deixou de controlar o setor e os moinhos puderam escolher onde comprar trigo. Para concorrer com grãos importados, os triticultores finalmente tinham estímulo para investir em sementes de alta qualidade e técnicas de manejo.
● Em 2000, a chegada das farinhas de trigo importadas fez com que os moinhos nacionais investissem no desenvolvimento de produtos premium, aumentando a demanda por trigo de alta performance.
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