13.out.2024 às 13h00
Na capital paulista, alguns dos apartamentos mais caros e cobiçados no mercado são também aqueles que mais dependem do ar condicionado, e com isso carregam um potencial maior de prejuízo ao meio ambiente. Eles vêm com varandas prontas para serem fechadas por painéis de vidro e nichos já projetados para receber os aparelhos de climatização artificial, sem os quais não seriam habitáveis.
O problema já foi demonstrado em mais de um estudo da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) nos últimos anos. Com temperaturas mais altas a cada ano e ondas de calor mais longas na cidade, especialistas alertam que muitas moradias com essas características são insustentáveis, e que será necessário reformar edifícios para que eles suportem as mudanças climáticas.
A relação de dependência das varandas envidraçadas com o ar condicionado se explica pelo mesmo princípio do calor que se forma numa estufa. O vidro permite a entrada de radiação solar no ambiente e, se não houver nenhuma abertura, bloqueia a circulação de ar que permitiria um resfriamento natural.
O envidraçamento desses espaços se popularizou no últimos anos, e especialistas ressaltam que isso não ocorreu por acaso. Houve incentivo da legislação da cidade: a Lei de Zoneamento prevê que varandas não sejam contabilizadas como área construída, o que leva a descontos em valores pagos por construtoras à prefeitura —quanto mais área construída, maior a outorga onerosa, uma taxa paga pelo direito de construir a partir de determinado limite.
Edifícios são entregues pelas construtoras com as varandas abertas, depois fechadas por decisão dos proprietários. Na prática, porém, os apartamentos são projetados para permitir a junção da varanda com as áreas de lazer. Derrubam-se as paredes que isolam o ambiente interno e externo, e erguem-se painéis de vidro junto aos gradis da varanda, criando uma estufa integrada à sala de estar.
Arquitetos e outros especialistas que chamam atenção para esse problema dizem não ser contrários ao uso do ar condicionado —pelo contrário, reconhecem que será inevitável num planeta em que já se veem os efeitos da crise climática. Mas se opõem ao que consideram abuso do equipamento.
"A concepção do projeto é feita de tal maneira que só se consegue habitar esse espaço se ele tiver condicionamento artificial. É isso que eu acho inaceitável", diz a engenheira civil Denise Duarte, especialista em adaptação climática. "No desenho, que aparece para o comprador e para o que se aprova na prefeitura, não há fechamento nenhum. Só que você vê sofá, tapete, uma mesa de jantar cheia de cristais [na varanda]. É uma enganação, ninguém vai ficar com aquilo aberto."
Duarte tem coordenado pesquisas na FAU que estimaram a alta no consumo de energia pelo ar condicionado em apartamentos fechados com vidro.
Um desses trabalhos, feito pelos alunos Guilherme Scarpa e Pedro Luz no ano passado, mostra que o desconforto por calor passa de exceção para regra quando as varandas são tapadas com vidro. Eles pesquisaram como seria a sensação de conforto térmico em diferentes modelos de apartamento, entre os mais comuns na capital, de acordo com maneira como as varandas são construídas.
Segundo o estudo, há casos em que o desconforto por calor passaria de 7% das horas em que o apartamento está ocupado ao longo do ano, com varanda aberta, para 68% das horas com desconforto com a varanda totalmente fechada. Quando se leva em conta o aumento das temperatura estimado para o período de 2076 a 2096, o desconforto por calor chega a 81% das horas ocupadas por ano.
No pior cenário, considerando que o ar condicionado seria ligado nas horas em que há desconforto, o consumo de energia chegaria a triplicar. "A configuração de apartamento mais desejada e produzida hoje é, também, a com o pior desempenho térmico e energético, insustentável em clima futuro", escrevem os estudantes. A conclusão é corroborada por Duarte, que coorientou o trabalho —a orientação é do professor Alberto Hernandez Neto, da Escola Politécnica.
O engenheiro civil Carlos Alberto de Moraes Borges, vice-presidente de Tecnologia e Sustentabilidade do Secovi-SP (sindicato da habitação), diz que o envidraçamento de varandas é uma decisão dos moradores, não das construtoras, e que seria ingênuo tentar contrariar a demanda por apartamentos com essa configuração e pelo consumo de ar condicionado. Ele diz que a solução é melhorar a eficiência energética dos aparelhos.
"As necessidades humanas são crescentes, são cada vez mais sofisticadas, e a gente tem que buscar caminhos para ter energias renováveis que atendam essa demanda. Não adianta querer combater a demanda", diz Borges.
São Paulo teve ao menos oito ondas de calor neste ano, o que aumenta o uso do ar condicionado. Ele é o utensílio que mais consome energia elétrica nos lares brasileiros, segundo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), ligada ao Ministério de Minas e Energia. Além disso, sua presença nos domicílios do país aumentou 85% nos últimos dez anos.
Em novembro do ano passado, em meio a uma onda de calor que atingia as regiões Sudeste e Centro-Oeste, o país teve recorde nacional de demanda por energia elétrica. Na avenida Faria Lima, polo financeiro da capital paulista, houve falhas de energia por ao menos dois dias. Muitos dos prédios ali têm geradores movidos a diesel, outro poluente, para caso de apagão. Esse recurso também tem sido usado pela concessionária Enel Distribuição SP para fornecer energia de forma emergencial quando há apagões na cidade.
Para diminuir o gasto com energia, arquitetos dizem que a retirada dos envidraçamentos não será suficiente. Adaptações estruturais devem favorecer a circulação de ar, mas também se discute a instalação de quebra-sóis para bloquear a incidência dos raios solares e a instalação de vidros especiais que barram parte da radiação. Casos mais graves onde não há ventilação cruzada, problema recorrente em microapartammentos, podem exigir a integração de unidades habitacionais.
"É possível regular o nível de envidraçamento, o quanto se pode abrir ou não a janela, e o quanto que entra de radiação nessa janela", diz o arquiteto Marcelo Mello, que estudou o tema em seu doutorado na USP. "Adaptações estruturais vão ser bastante necessárias no futuro."
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