Emerson Ramos
Com o pretexto de defender o direito à presunção de inocência no caso do ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida, a respeitada criminóloga Maria Lúcia Karam publicou nesta Folha o artigo "Presunção de inocência também vale para acusações de cunho sexual" (29/9). O artigo parecia dizer o óbvio (já que a presunção de inocência vale para qualquer acusação criminal), não fosse a cegueira de gênero dos argumentos utilizados.
O texto está repleto de ideias que não encontram lastro na realidade, como a de que existe uma "superproteção a mulheres que se dizem vítimas de ofensas relacionadas a seu gênero e sexualidade", que "sua palavra seria inquestionável" e que "no processo penal, vítimas não são frágeis ou oprimidas". São ideias fundadas no mito da vítima autoritária, que atribui um suposto conluio entre as mulheres e o sistema punitivo, em que este estaria sempre alerta para superproteger a denunciante.
Nada está mais distante da realidade do que essa ideologia cisheteropatriarcal de que a vítima está sempre pronta para abusar de seu poder enquanto vítima. Trata-se de uma falsa ideia que ignora a relação violenta que o próprio Estado estabelece com mulheres, pessoas LGBTQIA+ e outros grupos socialmente vulneráveis. Ignora a atitude de coragem dessas pessoas para enfrentarem os efeitos revitimizantes do processo penal e confrontarem a renitente cultura judiciária de culpabilização das vítimas.
Contudo, se o direito sempre pode ser visto como um instrumento de dominação, é possível enxergá-lo também como um meio pelo qual se enfrenta essa mesma dominação. Chico Buarque e Paulo Pontes (meu conterrâneo paraibano) diriam que "a mesma garrafa de cachaça acaba em carnaval ou desgraça". Isto é, nossa sorte depende do uso contextual dos instrumentos jurídicos.
O crescente manejo do direito penal pelos grupos socialmente vulneráveis, atuando como forças na repressão de condutas discriminatórias, é um exemplo disso. A expansão do controle social penal torna a questão criminal um fenômeno mais complexo do que costumava ser na década de 1980, época em que críticas criminológicas marxistas enxergavam o sistema penal exclusivamente como um epifenômeno da luta de classes, imaginando a figura do réu como a verdadeira vítima do processo penal burguês.
Sem ignorar graves problemas sociais como o encarceramento em massa e o racismo do sistema punitivo, uma leitura criminológica em perspectiva de gênero tem o condão de revelar que a estigmatização do processo penal não existe apenas para o réu, mas também para a vítima. E que, muitas vezes, a presunção de inocência é um mero artifício argumentativo para a revitimização e a desumanização dos corpos pelos quais a morte não é lamentada.
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