Um foco da análise política brasileira, neste momento, reside em compreender o fracasso eleitoral da esquerda: por que Lula, o PT e seu arco de alianças sofreram tamanha derrota nas disputas municipais? Nos derradeiros discursos de Guilherme Boulos está a resposta. Seus estrategistas perceberam que a fraqueza da candidatura dele advinha da distância entre suas pregações esquerdistas e a realidade nas massas paulistanas. Por essa razão, no 2º turno, Boulos abandonou sua cansada retórica socialista, substituindo-a pela valorização do enriquecimento pessoal. Esqueceu o discurso estatizante e adotou o lema do empreendedorismo. Inscreva-se 1/3Inscreva-se Boulos se transfigurar de Pablo Marçal escancara um fenômeno mundial: o envelhecimento da pauta da esquerda, elaborada a partir da secular formulação marxista da luta de classes, que opunha trabalhadores a empresários. Acontece que, no século 21, falar do operário contra o patrão soa como defender a carroça em lugar do trator. Ideias fora do tempo também fizeram soçobrar os partidos sociais-democratas da Europa, e mesmo o PSDB no Brasil. De certa forma, também por essa razão nos EUA se fragilizou o Partido Democrata. Todos se encarquilharam, não sabendo trabalhar com os novos, e complexos, dilemas políticos que preocupam a sociedade contemporânea. Não se trata de desmerecer, nem abandonar, a histórica luta pela justiça social. Nada disso. Trata-se de reconhecer que na economia pós-industrial, em plena era digital, outras aspirações populares surgem oportunizando, com variadas ferramentas, o progresso material e humano. Existe ainda, trazida pelo avanço tecnológico, a descrença: vou cuidar da minha vida, danem-se os políticos que me prometem sonhos. A realidade é tão óbvia que assusta: como não viram tal mudança os partidos de esquerda? Pelo simples fato de permanecerem agarrados às suas crenças ideológicas, discursando para si próprios, desligados da tomada do desenvolvimento humano. Embora disfarçada de progressista, na cultura woke, a esquerda se tornou um baluarte do passado. Eu acompanhava Fernando Henrique Cardoso em 1994, quando ele disse algo como “esqueçam o que escrevi”. Estávamos no restaurante Rubayat da alameda Santos, em São Paulo, reunidos com um grupo de empresários na fase de sua pré-campanha presidencial. Depois da preleção dele, e antes do jantar ser servido, abriu-se um diálogo, ao que alguém, tendo lido algumas passagens de seus escritos sobre o desenvolvimento econômico-social, perguntou-lhe se ele ainda acreditava naquelas teses da esquerda. FHC respondeu que nem tudo o que havia escrito no passado, durante a época que trabalhava na Cepal (Comissão Econômica da América Latina/ONU), em Santiago do Chile, ainda mostrava aderência com o presente, bastante modificado pelo surpreendente avanço do capitalismo latino-americano. Alguns desses trechos, disse, ficaram caducos, e não os repetiria hoje. A imprensa caiu de pau, tornando o episódio famoso. Mas FHC estava certo. É absolutamente impossível a um intelectual que se preze, especialmente da área das ciências humanas, manter a eterna defesa de suas ideias em um mundo que evolui. Se muda a realidade, alteram-se as interpretações que dela se fazem. Errado é permanecer afincado nas mesmas bandeiras fincadas no passado, superadas pela história. 2/3O historiador marxista Caio Prado Jr. foi quem 1º levantou esse cacoete enraizado na esquerda latino-americana. Em seu brilhante livro “A revolução brasileira”, publicado em 1966, ele criticava fortemente a visão europeia de que, no Brasil, caberia realizar uma reforma agrária de caráter antifeudal. Escreveu Caio Prado Jr: “Essa conclusão apriorística faz subestimar, se não muitas vezes até mesmo oblitera por completo, o que realmente se apresenta na realidade do campo brasileiro. A saber, a profundidade e extensão da luta reivindicatória da massa trabalhadora rural por melhores condições de trabalho e emprego”. Obliterar a realidade em função do apego a ideias atrasadas leva estudiosos a uma verdadeira tragédia do pensamento e, consequentemente, ao equívoco da ação política. Boulos que o diga. Sua pregação utópica agrada bem mais à elite da sociedade, que adora viver no mundo da lua, que às famílias pé-no-chão da periferia. A esquerda ficou com a cara da Janja. Chique, desconectada do povo.
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