Na Língua Bolsonara de Sinais (Libols), termos jurídicos sempre atendem a fins diversionistas. Idiotas da literalidade nos perdemos. Não fomos alfabetizados em Libols para decodificar as intenções exatas por trás das palavras e atos. Mas já se pode saber que estado de sítio, nessa língua, significa outra coisa.
Na política do “pânico e circo”, a sombra do estado de sítio tem papel parecido à do AI-5 e à da intervenção militar constitucional. São apitos para manter apoiadores do presidente excitados contra inimigos imaginários da pátria e as instituições sob fadiga.
Chamaram até Ives Gandra para revelar que, nos porões do art. 142 da Constituição, militares poderiam fechar o STF. O oráculo merece homenagem pelo serviço prestado à liberdade e à inteligência jurídica brasileira.
Jair Bolsonaro anunciou no começo da pandemia seu desejo de “fazer cumprir o artigo 142” contra o STF. Já havia testado também o grito do estado de sítio. Dia desses voltou a soprar o apito: “Gostaria que não chegasse o momento de decretar estado de sítio, mas vai acabar chegando. É para dar liberdade para o povo, para dar o direito ao povo de trabalhar. Não é ditadura não”. Parecia seu filho avisando que “AI-5 não é uma questão de ‘se’, mas de ‘quando’”.
Estado de sítio é instrumento extraordinário de restrição de direitos e incremento de poderes. Um dispositivo com prazo determinado para autodefesa, e não ataque, da democracia. Mas vale fazer uma distinção nessa conversa: existe o estado de sítio da Constituição de 1988, o da história do autoritarismo brasileiro e o da mitologia bolsonarista.
A Constituição de 1988 exige não só “comoção grave de repercussão nacional” como a ineficácia de outras medidas para enfrentá-la. O presidente precisa de autorização do Congresso para decretá-lo. Está sujeito a controle político pelo Congresso e judicial pelo STF a partir dos limites da excepcionalidade, necessidade e temporariedade (art. 137 e 138). É o último recurso numa crise, não o primeiro (já que o governo federal boicotou até as mais elementares medidas).
Na história do autoritarismo brasileiro, estado de sítio foi pretexto para a violência de governos à margem da Constituição. Fez parte de amplo repertório de exceção.
Nos 40 anos da Primeira República, por exemplo, sete foram em estado de sítio. Nove dos seus 12 presidentes usaram do artifício. Getúlio Vargas, entre 1930 e 1934, e entre 1935 e 1937, governou em estado de sítio. No Estado Novo, governou em “estado de guerra”. Não havia Parlamento para atrapalhar.
A mitologia bolsonarista quis vender algo novo e invertido: o nonsense do estado de sítio pela liberdade do vírus. A cara libertária não tem a ver com liberdade do trabalhador. Empobrecido e sem auxílio, este não tem escolha. Serve para declarar guerra a estados e municípios que, por razões sanitárias, impõem restrições momentâneas de circulação e causam constrangimento ao governo federal.
Nesse contexto, estado de sítio não faz sentido constitucional e não cumpre nenhuma função sanitária. Congresso não o autorizaria, e STF o invalidaria. O presidente parece apostar que a derrota no pleito esdrúxulo o ajudará a se eximir de responsabilidade por milhares de mortes e, ao mesmo tempo, a exaurir a energia de instituições de controle.
Instituições esgotadas e sem capacidade de reação oferecem oportunidade para eviscerar a Constituição sem custo. A sombra do estado de sítio, do AI-5 e da intervenção militar, enquanto intimida críticos por meio de assédio judicial e abuso da Lei de Segurança Nacional, é o caminho escolhido pelo governo em direção à consolidação autoritária.
Falta combinar o preço com o centrão, capturar o que resta de autonomia nas Forças Armadas e atiçar polícias contra governadores. Está escrito na cartilha da Libols: a revolução autoritária não sairá no Diário Oficial.
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