Seguindo conselho do colega Antonio Prata, esta coluna trata não de coisas pavorosas, como o coronavírus e O-Que-Não-Pode-Ser-Dito-Genocida, mas de coisas belas. Tampouco de piano, como prometeu Pratinha, mas do japu.
Coitado de quem nunca viu um japu, o Psarocolius decumanus. Preto como noite sem lua, com despropositadas penas amarelas na cauda, bico idem ou cor de marfim. Beleza pura.
O canto do japu, um piado longo e metálico, só não parece mais estranho que seu ninho. São tecidos de fibras no formato de um longo saco, com abertura no alto, a moradia menos prática que se possa imaginar.
Anos atrás, em Santo Antônio do Pinhal (SP), japus penduraram ninhos nas folhas de uma palmeira jerivá. O saco balançava com o vento, e dava para imaginar que o movimento pendular talvez servisse para acalmar os filhotes metidos no fundo.
Humanos gostam de buscar propósito e função em tudo, projetando as próprias noções sobre o universo animal. Em sã consciência, não parece plausível que a prole de pássaros necessite ser embalada como fazemos com os bebês.
Já a melodia obedece obviamente ao imperativo de conquistar atenção de fêmeas com vistas à cópula. Mas por que raios modular a siringe e emitir aqueles sons peculiares? Só faz sentido se elas forem capazes de apreciá-los.
A lembrança das idiossincrasias do japu despertou com a leitura do livro “The Evolution of Beauty” (a evolução da beleza), de Richard O. Prum. A obra traz na capa a figura de um faisão (Argusianus argus), ave do Sudeste Asiático, e o subtítulo “como a teoria esquecida de Darwin sobre escolha de parceiros dá forma ao mundo animal”.
Seu capítulo sobre o faisão excêntrico, “Beleza acontece”, tem lugar garantido na melhor literatura de não ficção sobre história natural. Não faz feio diante de Stephen Jay Gould, David Quammen ou Carl Zimmer.
O A. argus não se destacaria entre outros faisões mais coloridos, a não ser pelo avantajado de algumas penas das asas e da cauda. O que o torna único é a estranha corte à fêmea.
Há vídeos disponíveis na rede. É de humilhar qualquer pavão. Primeiro, o macho limpa um pátio de exibição na mata, deixando a terra nua. Se alguma fêmea aparecer, começa o espetáculo.
O animal ergue as penas compridas de cada asa em forma de leque e as projeta para a frente, formando um cone na direção da fêmea. Só aí se revela a parte oculta das penas, que trazem cada uma até 15 círculos sombreados de modo a se parecerem com esferas tridimensionais.
No campo de visão da faisoa, o cone deve surgir como um anfiteatro portátil enfeitado com centenas de bolas de natal. Por cima do leque, penas da cauda se agitam de modo ritmado, para cima e para baixo, enquanto a cabeça azul do macho confere reações da cortejada por entre as penas exibicionistas.
Prum não fica na descrição. Na melhor prosa científica, extrai dela uma reflexão potente sobre a seleção sexual exercida pelas fêmeas, que para ele são dotadas de autonomia e juízo estético na escolha de parceiro. E isso independentemente do valor adaptativo sinalizado pelos ornamentos, como sustenta a ortodoxia darwinista.
O autor argumenta que a eugenia predominante entre os primeiros evolucionistas vitorianos enviesou o campo darwinista para a negação da segunda ideia perigosa de Darwin, o poder da seleção sexual desvinculada da sobrevivência do mais apto. E que isso teria implicações para a espécie humana, do patriarcalismo ressurgente à guerra contra o feminismo.
Melhor parar por aqui, porque a proposta era não falar de coisas feias. Mais alguns parágrafos e seria inevitável nomear o genocida. Por sorte acabou o espaço.
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