sábado, 27 de março de 2021

Marcelo Leite Poder da beleza natural está sob domínio das fêmeas, FSP

Seguindo conselho do colega Antonio Prata, esta coluna trata não de coisas pavorosas, como o coronavírus e O-Que-Não-Pode-Ser-Dito-Genocida, mas de coisas belas. Tampouco de piano, como prometeu Pratinha, mas do japu.

Coitado de quem nunca viu um japu, o Psarocolius decumanus. Preto como noite sem lua, com despropositadas penas amarelas na cauda, bico idem ou cor de marfim. Beleza pura.

O canto do japu, um piado longo e metálico, só não parece mais estranho que seu ninho. São tecidos de fibras no formato de um longo saco, com abertura no alto, a moradia menos prática que se possa imaginar.

Anos atrás, em Santo Antônio do Pinhal (SP), japus penduraram ninhos nas folhas de uma palmeira jerivá. O saco balançava com o vento, e dava para imaginar que o movimento pendular talvez servisse para acalmar os filhotes metidos no fundo.

Humanos gostam de buscar propósito e função em tudo, projetando as próprias noções sobre o universo animal. Em sã consciência, não parece plausível que a prole de pássaros necessite ser embalada como fazemos com os bebês.

Já a melodia obedece obviamente ao imperativo de conquistar atenção de fêmeas com vistas à cópula. Mas por que raios modular a siringe e emitir aqueles sons peculiares? Só faz sentido se elas forem capazes de apreciá-los.

A lembrança das idiossincrasias do japu despertou com a leitura do livro “The Evolution of Beauty” (a evolução da beleza), de Richard O. Prum. A obra traz na capa a figura de um faisão (Argusianus argus), ave do Sudeste Asiático, e o subtítulo “como a teoria esquecida de Darwin sobre escolha de parceiros dá forma ao mundo animal”.

Detalhe de pena de faisão
Pena de Faisão-argus - Wikimedia Commons/Bernard Dupont

Seu capítulo sobre o faisão excêntrico, “Beleza acontece”, tem lugar garantido na melhor literatura de não ficção sobre história natural. Não faz feio diante de Stephen Jay Gould, David Quammen ou Carl Zimmer.

A. argus não se destacaria entre outros faisões mais coloridos, a não ser pelo avantajado de algumas penas das asas e da cauda. O que o torna único é a estranha corte à fêmea.

Há vídeos disponíveis na rede. É de humilhar qualquer pavão. Primeiro, o macho limpa um pátio de exibição na mata, deixando a terra nua. Se alguma fêmea aparecer, começa o espetáculo.

O animal ergue as penas compridas de cada asa em forma de leque e as projeta para a frente, formando um cone na direção da fêmea. Só aí se revela a parte oculta das penas, que trazem cada uma até 15 círculos sombreados de modo a se parecerem com esferas tridimensionais.

No campo de visão da faisoa, o cone deve surgir como um anfiteatro portátil enfeitado com centenas de bolas de natal. Por cima do leque, penas da cauda se agitam de modo ritmado, para cima e para baixo, enquanto a cabeça azul do macho confere reações da cortejada por entre as penas exibicionistas.

Prum não fica na descrição. Na melhor prosa científica, extrai dela uma reflexão potente sobre a seleção sexual exercida pelas fêmeas, que para ele são dotadas de autonomia e juízo estético na escolha de parceiro. E isso independentemente do valor adaptativo sinalizado pelos ornamentos, como sustenta a ortodoxia darwinista.

O autor argumenta que a eugenia predominante entre os primeiros evolucionistas vitorianos enviesou o campo darwinista para a negação da segunda ideia perigosa de Darwin, o poder da seleção sexual desvinculada da sobrevivência do mais apto. E que isso teria implicações para a espécie humana, do patriarcalismo ressurgente à guerra contra o feminismo.

Melhor parar por aqui, porque a proposta era não falar de coisas feias. Mais alguns parágrafos e seria inevitável nomear o genocida. Por sorte acabou o espaço.

 

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