Ele trabalha na segurança do prédio. Está sempre lá, cedo de manhã, o João. Nunca soube de onde ele vem e como chega até aqui. Um dia perguntei. “Pego um ônibus, embarco no metrô e depois caminho um pedaço de Moema pra chegar aqui.”
Me lembrei do João quando vi um comunicador reclamando que a cidade andava “quase normal”, no meio da pandemia, com o transporte lotado e tal. Perguntei de onde as pessoas imaginam que surgem os entregadores de pizza, diaristas, motoristas, frentistas e porteiros que atendem o andar de cima, silenciosamente, todos os dias?
Alguém me disse que a pergunta era inconveniente e podia servir de boicote às medidas de isolamento. Era melhor manter essa coisa meio “invisível”. Achei curioso. Naquela visão, devíamos fingir que o problema não existia, ou quem sabe nem bem aquelas pessoas todas existiam. E irmos pra cama tranquilos depois de um filme na Netflix.
O problema da autoilusão é que você dá um drible na realidade, xinga seu adversário pra disfarçar, mas o mundo frio dos indicadores e as estações lotadas continuam lá, todas as manhãs.Os dados mostram que a taxa de isolamento social em São Paulo caiu a apenas 43%, agora no auge da pandemia. A pergunta é por que, e quem está pagando a conta.
Uma pista foi dada no estudo publicado no Journal of Population Economics, mostrando como diferenças de renda afetam as pessoas na pandemia. O grupo de maior renda tem até 54% a mais de chances em relação ao de menor renda de tomar medidas de proteção como o distanciamento social.
Há muitas pesquisas apontando nessa mesma direção. Uma das mais cruéis mostrou que a pandemia tem sido muito mais letal entre a população negra, no estado de São Paulo. Se estivéssemos na Dinamarca ou na Suécia, com uma estrutura social mais homogênea, medidas de isolamento atenderiam a todos de modo mais uniforme. Mas estamos no Brasil, com seu enorme contingente de pobreza. E aí as coisas se complicam.
Dan Ariely usou um termo difícil pra explicar o fenômeno. Sugeriu que a vulnerabilidade econômica leva as pessoas a fazer um “desconto hiperbólico”, priorizando os temas ligados à subsistência em detrimento de regras e cuidados com o futuro.
Meu ponto é que pouca gente parece de fato disposta a sair da retórica e encarar o problema. A maior probabilidade é de irmos levando. Podemos até fazer de conta que o auxílio emergencial vai resolver o problema, mas ele não vai. Seu alcance é, quando muito, amenizar a situação de quem vive abaixo da linha de pobreza.
A verdade é que se trata, em boa medida, de um problema sem solução. O sistema político até poderia ter feito um ajuste duro e gerado uma transferência de renda mais robusta, mas não o fez. A elite do funcionalismo abriu mão de ganhar acima do teto? Os partidos abriram mão do fundão? Alguém topou discutir redução temporária de jornada na área pública, em meio à maré de demissões no lado privado?
Contar com a disposição da sociedade para isso é uma quimera. A mistura de pobreza e desigualdade é “confortável” no Brasil. Que percentual de famílias com maior renda deixa que a empregada fique em casa? Dias atrás vi o oposto: a família demite a empregada que precisava acompanhar o pai na UTI. Ela agora está “na batalha”, como me disse dia desses, no elevador. O risco da Covid não é o primeiro item de sua escala de urgências.
Escutei muita gente boa sobre como lidar com o problema. Há quem imagine que a solução é ir ao Supremo e aumentar o valor do auxílio. Quem sabe o STF ajude também a achar a fonte do recurso. Um interlocutor me falou de “pequenas medidas práticas”, como ampliar frotas de transporte e evitar aglomeração. “Não há bala de prata”, me disse ainda outro, “e já é quase tarde demais para tentar alguma coisa”.
Talvez ele esteja certo e o que nos resta, enquanto esperamos pela vacina, é exercitar a raiva política (quem sabe nossa grande especialidade) e evitar as perguntas inconvenientes. A opção seria ter liderança. Pactuar medidas duras e acelerar o fim dessa tragédia, mas não vejo disposição de quase ninguém nesta direção.
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