A Terra é azul. Essa frase já não provoca as mesmas reações emocionadas de 1961, quando foi dita pelo cosmonauta Iuri Gagarin, a primeira pessoa a vê-la de cima. Hoje é algo bastante óbvio: é a água que se avoluma em mares, rios, cataratas, lagos, icebergs. De tão abundante, parece infinita. Mas depende do ponto de vista: cerca de 97% dela está nos oceanos e 2%, nas geleiras. Apenas 1% é água doce acessível aos humanos.
A água do planeta passa continuamente pelo ciclo hidrológico, mas o acesso a essa pequena parcela é cada vez mais afetado pelos efeitos da urbanização, crescimento populacional, consumo agrícola (que responde por 70% do uso atual), industrial (19%) e doméstico (11%) – este subiu 600% nos últimos 50 anos. Padrões de consumo com grande pegada de água (uma forma de calcular quanta água um determinado produto demanda, como um quilo de bife ou uma banana) também cresceram substancialmente, o que acirra a disputa geral.
Há ainda a questão inevitável das mudanças climáticas e do desmatamento, que tornam o comportamento da água cada vez mais errático. Sistemas que dependem de um determinado volume de chuva em reservatórios, por exemplo, já não podem contar com essa sazonalidade. Basta lembrar de São Paulo e Cidade do Cabo, que passaram por graves crises hídricas nos últimos anos e só voltaram a níveis normais quando a chuva voltou.
Não há uma única tecnologia de abastecimento. Diferentes estratégias são necessárias para todo mundo ter água limpa
Nesse ritmo, a maioria da população global sofrerá com escassez ao longo do ano a partir de 2040. Enquanto muitos esperam que avanços tecnológicos “resolvam” a questão, para Vincent Casey, especialista sênior de saneamento da ONG WaterAid, não é preciso escolher entre o futuro e o passado: existe espaço para usinas de dessalinização hightech e para técnicas empregadas desde o Egito Antigo.
“Não há uma única tecnologia de abastecimento de água ou opção de serviço que funcione em todos os contextos. Diferentes estratégias serão necessárias para que todo mundo tenha água limpa. O desafio é como conseguir isso de forma acessível, e isso é principalmente um desafio de gestão e financiamento”, explica.
Mulheres e meninas passam 200 milhões de horas por ano caminhando para coletar água mundo afora, o que as impede de trabalhar e estudar
Para quem tem água limpa em casa, é difícil entender quão diferente a vida é sem ela. Juntas, mulheres e meninas passam 200 milhões de horas por ano caminhando para coletá-la mundo afora, o que as impede de trabalhar e estudar. E, a cada dois minutos, uma criança morre vítima de doenças causadas pela água poluída e pela falta de saneamento.
É uma crise, mas não é inevitável. Devido à sua capacidade regenerativa, a água pode ser parte de soluções sustentáveis, flexíveis e equitativas – desde que seja uma verdadeira prioridade. Para Vincent, não é possível vê-la de nenhuma outra forma. “O acesso à água e ao saneamento são direitos humanos”, reforça.
Barra, Brasil: saneamento descentralizado
Em um mundo em que 4,2 bilhões não têm acesso a esgotamento sanitário adequado (incluindo 107 milhões de brasileiros), faz-se cada vez mais urgente testar soluções que não dependam apenas de grandes obras. “O esgoto ainda não entrou no wireless”, brinca Marussia Whately, diretora do Instituto Água e Saneamento (IAS). “Tiramos cada vez mais os fios de nossa comunicação e continuamos criando sistemas sanitários que dependem de redes enormes e que gastam uma energia gigantesca.”
Isso não significa que os sistemas centralizados sejam obsoletos, explica ela, mas que a resposta mais eficiente depende das condições físicas, ambientais e culturais de cada território. Um exemplo de alternativa é um projeto-piloto em Barra, na Bahia, feito em 2019 pela Associação Bem-Te-Vi Diversidade e pela Articulação do Semiárido Brasileiro com apoio do IAS. Com uma abordagem batizada de saneamento inclusivo, foram construídas 40 cisternas para armazenar água da chuva e 8 sistemas de tratamento e reúso de esgoto em escolas na zona rural, beneficiando mais de 6 mil alunos ao todo.
É no [âmbito] local que se fica sem água e onde há enchentes. E é também no local que podemos construir as soluções
Para o esgotamento, foi escolhido um tipo de fossa compartimentada escalável e de baixo custo. Construída pelos cisterneiros da região com maioria de materiais locais, a fossa se divide em compartimentos que limpam os dejetos aos poucos, com sedimentação e filtragem por camadas de solo, pedra brita e bidim. Na superfície, plantas de crescimento rápido absorvem a água resultante. Caso a população prefira, a fossa também pode ser adaptada para levar essa água para reuso em plantios.
O lodo fecal leva entre dois e cinco anos para se acumular e pode ser retirado e gerido pela própria comunidade de forma rápida e segura, por compostagem ou secagem. “É no [âmbito] local que as pessoas ficam sem água e onde há enchentes. E é também no local que podemos começar a construir as soluções”, aponta Marussia.
Dakar, Senegal: do lodo à luz
Na capital senegalesa, é a alta tecnologia que se destaca. Mais de 1 milhão de pessoas não estão conectadas ao sistema de esgoto de Dakar e despejam seus dejetos a céu aberto ou em fossas rústicas, que são muitas vezes esvaziadas manualmente – um trabalho muito perigoso para a saúde desses trabalhadores. É aí que entra o Janicki Omni Processor, um multiprocessador financiado pela Bill & Melinda Gates Foundation e que hoje trata um terço do lodo fecal da cidade em parceria com o governo.
Desde 2015, o lodo de dezenas de milhares de residências é coletado mecanicamente por mangueiras e transportado por caminhões até a máquina, que é relativamente compacta e permite a descentralização do tratamento. Ela é capaz de tratar o esgoto com agilidade e de forma a gerar água potável, energia elétrica e cinzas, que podem ser usadas como fertilizante ou material de construção. O objetivo é fazer com que o saneamento seja acessível em países em desenvolvimento e também comercialmente atraente, já que esses subprodutos podem ser vendidos localmente.
Tel Aviv, Israel: reuso como prioridade
Devido à diversificação de fontes, Israel, um país majoritariamente desértico, tornou-se exportador de água e líder mundial em reúso e dessalinização nas últimas décadas. É também a nação com menor índice de água perdida por vazamentos, visto que prioriza a manutenção constante da infraestrutura: a perda é de menos de 8%. (No Brasil, essas perdas estão em 38%.)
Mais de 80% da água de esgoto de Israel é reutilizada e a maior de suas usinas de tratamento atende 2,5 milhões de pessoas
Mais de 80% da água de esgoto de Israel é reutilizada e a maior de suas usinas de tratamento é a Shafdan, um complexo que fica na região metropolitana de Tel Aviv, atende 2,5 milhões de pessoas e é considerado modelo pela ONU. Depois do tratamento inicial – que separa dejetos, elimina os patógenos e eventualmente gera adubo –, a água passa por aquíferos e filtragens naturais com areia. Em seguida, é transportada para irrigar plantações no deserto de Neguev. Por lá, aliás, a água ainda encontra outra inovação: a irrigação por gotejamento, uma eficaz técnica israelense para economizar recursos.
Monte Boutmezguida, Marrocos: coleta de névoa
Na mesma busca por novas fontes de água, a população de Monte Boutmezguida virou-se para uma velha conhecida: a névoa. No alto dos montes, foram instaladas enormes redes especiais, chamadas de “pescadoras de nuvens”, para captar e condensar a água que o vento sopra. As gotas escorrem para um recipiente e depois são levadas por canos a reservatórios que atendem cerca de mil pessoas. Nesse caso, a água é fresca e utilizada para consumo e cultivo.
A coleta de névoa tem potencial para aliviar a escassez em pequenas comunidades e, por isso, diferentes tipos de suportes vêm sendo estudados na América Latina e nos EUA. No instituto norte-americano de Virginia Tech, surgiu uma espécie de harpa para névoa, com fios verticais finos e próximos uns dos outros. Seus testes mostram que a solução pode ser até três vezes mais eficaz que as redes. A inspiração veio da própria natureza: no caso, das sequoias que captam água da névoa em suas folhas em forma de agulha.
Pequim, China: recarga artificial de aquíferos
Um dos efeitos colaterais do estresse hídrico é o esvaziamento de aquíferos, o que causa problemas sérios como esgotamento de reservas subterrâneas e afundamento do terreno. A explicação é simples: visto que o espaço antes preenchido pela água secou devido ao uso excessivo, ele colapsa e o que estava em cima afunda junto. Para garantir mais água e segurança estrutural, há variados experimentos no campo de recarga dos aquíferos.
Em 2016, um estudo estimou que Pequim, que depende majoritariamente de água subterrânea, estivesse afundando 11 centímetros ao ano. Três anos depois, a cidade investiu em um projeto-piloto que envolve tanto trabalho humano quanto natural para recarregar o aquífero do rio Chaobai. Às pessoas, cabe o pré-tratamento de água superficial em uma usina e seu transporte canalizado até a área de infiltração. A natureza se encarrega do processo de filtragem por meio do próprio solo e da força da gravidade. Em poucos meses, a água se adequa ao espaço, passa por um novo tratamento, volta às torneiras – e reinicia o ciclo.
Roterdã, Países Baixos: a grande praça aquática
Em dias secos, a praça de Benthemplein recebe esportistas, artistas, skatistas e outros em busca de um espaço público agradável. Mas é quando chove que ela mostra a que veio: construída de forma afundada, a praça coleta e drena até 1,7 milhão de litros de água pluvial dos arredores, que depois é infiltrada no solo debaixo do pavimento ou desemboca em um canal próximo.
Durante o período chuvoso, esse procedimento alivia o sistema de esgoto da cidade e ajuda a prevenir enchentes. No resto do tempo, agrega valor à cidade. A Benthemplein foi inaugurada em 2013 e é considerada a primeira praça aquática em grande escala do mundo – um exemplo de arquitetura resiliente e de requalificação de espaços públicos que inspira urbanistas mundo afora.
Uma nova cultura de cuidado com a água é fundamental para continuarmos vivendo
Estima-se que sete em cada dez pessoas hoje tenham água na torneira. Se esse número vai subir ou baixar nos próximos anos depende justamente da criação de uma relação resiliente entre as cidades e seu elemento mais vital. “Tudo que estamos falando faz parte de qualificar uma nova cultura de cuidado com a água”, afirma Marussia Whately. “É fundamental para continuarmos vivendo.”
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