Disputas pelo uso de água dos reservatórios de duas das maiores hidrelétricas brasileiras podem gerar impacto bilionário na conta de luz e expõem um desafio para o setor elétrico: com a piora nas condições hídricas, a expectativa é que os conflitos se acentuem e reduzam o volume energia assegurada por barragens no país.
A curto prazo, segundo especialistas, o rombo pode chegar a até R$ 6 bilhões, caso as restrições impostas à operação das usinas de Belo Monte, no Pará, e Santo Antônio, em Rondônia, sejam praticadas de maneira integral.
A longo prazo, a expectativa é que, com menos chuvas a cada ano, a capacidade hidrelétrica instalada hoje não voltará a produzir toda a energia esperada quando as usinas foram projetadas, exigindo
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Dois dos maiores projetos licitados no governo Dilma Roussef, Belo Monte e Santo Antônio, enfrentam hoje embates com o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio ambiente e Recursos Naturais Renováveis) que, segundo os controladores dos projetos, podem inviabilizar as operações.
No primeiro caso, o órgão ambiental propôs a redução da vazão no canal que alimenta a principal barragem da usina para minimizar os impactos ambientais e sociais na região da Volta Grande do Xingu. Segundo o Ibama, a baixa vazão na área já prejudica fauna, flora e comunidades ribeirinhas.
As duas partes chegaram a acordo para manter, em 2021, as vazões mínimas previstas no licenciamento ambiental, mas os termos são questionados pelo Ministério Público Federal, e uma solução definitiva ainda está em discussão.
Belo Monte é a maior hidrelétrica 100% nacional, com capacidade instalada de 11.200 MW e garantia de entrega de 4.500 MW médios por ano.
Em Santo Antônio, a quarta maior do país, os proprietários da hidrelétrica e o Ibama divergem sobre o volume de água no reservatório. As empresas alegam que um nível mais baixo prejudicaria a operação, mas o órgão ambiental diz que o reservatório alaga áreas de uma reserva.
Em carta às autoridades, a Santo Antônio Energia defende que a redução do volume do reservatório pode levar ao desligamento das 50 turbinas, que precisam de uma queda-d’água mínima para operar.
A alternativa a eventual paralisação ou redução da capacidade, diz o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), seria usar mais os demais recursos energéticos disponíveis, como outras hidrelétricas “e, principalmente, termelétricas e importação de energia”.
Aprovados por determinação de Dilma apesar da forte resistência de ambientalistas, os dois projetos bilionários enfrentam problemas desde a formação dos consórcios, que precisaram de reforço estatal para garantir os leilões.
Embates com Ibama e Ministério Público em tão pouco tempo são vistos com preocupação pelo mercado, já que as vazões foram aprovadas no licenciamento ambiental.
São casos emblemáticos, mas não os primeiros: nos últimos anos, conflitos gerados pela seca já levaram a revisões na operação dos reservatórios do rio São Francisco e de Furnas, em Minas Gerais.
A ANA (Agência Nacional de Águas) discute agora uma revisão nas regras de operação do rio Tocantins, que tem sete hidrelétricas. Entre elas, Tucuruí (PA), a segunda maior usina 100% nacional, com capacidade instalada de 8.300 MW.
“A grande motivação é tomar decisões que maximizem o benefício social para aqueles territórios”, diz o diretor da ANA Oscar Cordeiro Netto. “Tem que ter produção de energia elétrica, mas tem o uso industrial, navegação, turismo, lazer e recreação e tem criação de peixes.”
É consenso no setor elétrico que as condições hidrológicas brasileiras estão piorando, em consequência das mudanças climáticas, o que deve intensificar esse debate. Na quinta (11), os reservatórios do subsistema Sudeste/Centro-Oeste, considerada a caixa-d’água do setor elétrico brasileiro, estavam com 32,5% de sua capacidade de armazenamento.
É o pior número para este período do ano desde 2015, e as séries históricas do ONS mostram que há dez anos o indicador não supera os 80%, situação que foi comum para esta época do ano entre 2004 e 2012.
No lago de Furnas, com grande apelo turístico, o baixo nível das águas levou lideranças locais a uma mobilização que culminou com a aprovação de uma emenda à constituição de Minas Gerais tombando a região, prevendo cotas mínimas para o reservatório.
“Questão climática é determinante para o que estamos vivendo”, afirma o ex-diretor do ONS Luiz Eduardo Barata.
“Um ano [de hidrologia] ruim não é mais algo episódico. Tem acontecido há vários anos e cada vez pior”, diz, lembrando que a queda dos reservatórios ocorreu mesmo com a redução do consumo na pandemia.
Responsável pelo planejamento da expansão do abastecimento, a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) inclui o tema entre os principais desafios do setor em seus planos de expansão da oferta de energia.
“As restrições e os aspectos relacionados ao uso múltiplo são fundamentais para o planejamento, pois sinalizam o quanto posso contar com esses recursos ou o quanto precisamos investir”, diz o presidente da entidade, Thiago Barral.
Ele pede, porém, que as decisões sejam tomadas com transparência e antecedência suficiente para permitir a construção de novos projetos, evitando impactos significativos nas tarifas, com o acionamento de térmicas mais caras.
O diretor da ANA reconhece o desafio. “Estamos tendo uma demanda crescente pela água, mas o que se constata hoje é que não estamos em situação normal. Estamos passando por processos de variações climáticas que têm levado a situações de estiagem mais severa, de escassez.”
Ele argumenta que os impactos locais têm que ser considerados, tanto do ponto de vista social quanto econômico. No Tocantins, exemplifica, a temporada de praias gera negócios, empregos e arrecadação para estado e municípios.
A curto prazo, diz, o papel da agência é avaliar o nível das águas ao fim do período de chuvas e tentar evitar escassez nos meses de seca. Assim, acompanha as bacias hidrográficas, nas quais o cenário é avaliado em parceria com o ONS.
“A longo prazo, precisamos de uma concertação mais ampla sobre como vamos tratar a questão das represas, barragens e reservatórios num contexto de mudanças climáticas e num contexto de novas energias renováveis”, diz.
“Não é só produzir energia, é produzir grãos, camarão, peixe, vários tipos de produtos que têm grande consumo de água embutido, e para o consumo das pessoas. E também para preservar o ambiente.”
Empresas do setor reclamam que a imposição unilateral de restrições gera insegurança entre os investidores e pedem um debate mais profundo sobre o tema, com participação de todos os ministérios e agentes afetados.
“Quem tomou a decisão de construir um empreendimento está comercializando energia com base nessa garantia física. Qualquer alteração trará prejuízo para o empreendedor”, diz Charles Lenzi, da Abragel (Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa), que representa 286 empresas do segmento de pequenas e médias centrais hidrelétricas.
O Ibama disse em nota que o acordo com Belo Monte estabeleceu medidas mitigatórias e compensatórias “a serem rigorosamente executadas pela empresa” para permitir a geração de energia e a preservação do ambiente.
O Ministério de Minas e Energia e as concessionárias de Belo Monte e Santo Antônio não responderam.
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