Marcos Nogueira
Xuxa Meneghel, ao propor que a população carcerária seja cobaia em testes de vacinas, fármacos e cosméticos, expôs-se de forma desastrosa –e também desastrada, no subsequente pedido de desculpas que não convenceu ninguém.
O ídolo de muitos adultos ruiu em tempo real, nas redes sociais, como sói acontecer nesta era de implosão instantânea de reputações.
Fui poupado da decepção.
A fala monstruosa de Xuxa não me desenganou pelo mero fato de eu nunca ter sido enganado. Não existia ídolo para desmoronar.
Conheci a imagem pública de Xuxa, na minha pré-adolescência, quando a menina gaúcha era modelo publicitária e posava para ensaios sensuais. Eu a vi nua na “Playboy” e na “Ele Ela”, que os meninos pegavam escondido da coleção do pai. Xuxa passou a frequentar a capa das revistas “Manchete”, “Amiga” e “Contigo”, na condição de namorada de Pelé.
Então virou apresentadora infantil, na extinta Rede Manchete. Protagonizou episódios meio cômicos, meio acintosos de completa falta de jeito para cuidar das crianças do auditório –a própria Xuxa era uma menina de 20 anos.
O mito da Rainha dos Baixinhos foi fruto de um meticuloso trabalho de Xuxa com a mão forte de Marlene Mattos e a massacrante máquina de propaganda da Rede Globo. Virou um produto cultural sem autonomia intelectual, mantida na redoma pelos mantenedores de sua fortuna.
Quando a metamorfose se completou, em 1986, eu já estudava para o vestibular na hora do “Xou da Xuxa”. Estava velho demais para me encantar com a fada que a TV vendia.
Minha imagem de Xuxa ainda era por demais mundana, humana, da garota que dá uma bronca desproporcional no pirralho que atrapalha a gravação do programa.
Solta na maturidade para fazer o que lhe passa na cabeça, Xuxa voltou a praticar com tudo um passatempo favorito dos humanos: falar bobagem.
Sei que “bobagem” é um eufemismo neste caso. Xuxa falou um absurdo, uma barbaridade, e se alongou na argumentação o suficiente para percebermos que não se expressou equivocadamente.
O mais grave: o pensamento sórdido de Xuxa encontra eco numa parcela considerável da população.
Xuxa é vegana e se diz defensora dos direitos animais, em oposição ao “pessoal dos direitos humanos”. Já ouvi de um monte de gente –vegana ou não– o lugar-comum “gosto mais de cachorro do que de gente”.
Não que a espécie humana tenha feito por merecer admiração. Mas é irônico e paradoxal que o principal motivo para não gostar da humanidade seja a misantropia e total falta de empatia explicitada por Xuxa.
Ao tratar a população carcerária como uma massa de inúteis que deve ser explorada pelas pessoas livres de bem, Xuxa me lembrou da série documental “Rotten”, disponível na Netflix.
A série denuncia os podres da cadeia de produção de vários alimentos: abacate, mel, chocolate, bacalhau. O que se vê é pessoas explorando outras pessoas para ganhar dinheiro –e o consumidor desfrutando da comida em cômoda ignorância.
O episódio “Bafo de Alho”, da primeira temporada, esmiúça as crueldades perpetradas pelo cartel de comerciantes de Jinxiang, na China, a capital mundial do alho. Os chineses são mancomunados com seus pares em Gilroy, na Califórnia, a capital norte-americana do alho.
Para agradar aos importadores dos Estados Unidos, os produtores da China devem entregar o alho já descascado. Existem máquinas que descascam dentes de alho, mas a máfia de Jinxiang tem um método mais barato: o trabalho escravo dos detentos de Peixian e outras colônias penais.
Os presos são obrigados a passar o dia tirando a pele do alho. Repetem tantas vezes a tarefa que acabam perdendo as unhas da mão. Se você não é assinante da Netflix, pode ler de graça (mas em inglês) esta reportagem do jornal britânico “Financial Times”.
O alho de Jinxiang é 100% vegano, zero maus-tratos a animais em todas as etapas da produção.
O pessoal que prefere cachorros a seres humanos pode comer sem peso na consciência. E você, Xuxa?
Nenhum comentário:
Postar um comentário