Se vivo fosse, ecoando a voz cavernosa, o que falaria Nelson Rodrigues sobre "tudo isso que está aí"? Valendo-se de sua miopia profética, como ele enxergaria hoje o país? Em sua condição de decifrador da alma brasileira, com sua intuição e autocrítica sobre os comportamentos da moda, aliadas ao faro de repórter para histórias escabrosas, Nelson conseguiria ver a luz no fim do túnel?
Impossível saber sem consultar um médium de mesa branca: "Você está do outro lado, Nelson? Faz frio?". Por sorte, o relançamento do folhetim "Asfalto Selvagem" —que com prazer reli para fazer uma reportagem na revista 451 que está nas bancas— fornece algumas dicas e interpretações para nosso momento de tragédia.
É uma obra singular, sem paralelo na literatura nacional, que só poderia ter sido escrita por Nelson Rodrigues, uma "flor de obsessão" que conseguia ao mesmo tempo admirar o general-ditador Garrastazu Médici e elogiar o jornalista João Saldanha, do Partido Comunista. Seus conceitos e frases continuam a ser repetidas nas redes sociais tanto pela esquerda quanto pela direita: "Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade".
Um dos personagens mais complexos é o doutor Arnaldo, pai do ímã sexual Engraçadinha. Advogado, orador e deputado, ele representa a "reserva moral" cujo destino seria a Presidência da República. No íntimo, sonha com um führer tropical: "Ah, um Hitler aqui! Encostava esse miserável no muro e tome bala!".
Outro "homem de bem" é Odorico Quintela, obscuro promotor público de Vale das Almas, nascido na cidade de Mimoso, que se torna juiz togado no Rio. Almeja ser desembargador e depois se dar bem na política. É uma espécie de proto-Sergio Moro. Em sua obsessão de conquistar o poder, digo, Engraçadinha, usa como arma de sedução a carteira do Judiciário. Assim como Moro, quebra a cara.
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