domingo, 21 de março de 2021

Ano pandêmico mescla desigualdade social e bestas raivosas, FSP

 

Criança, visitei uma amiga de escola, cuja família havia vendido a antiga casa em que morava, em Copacabana, para construir uma nova, no Horto.

Enquanto esperavam a conclusão da obra, pai, mãe, irmãos, a avó e os cachorros se atocharam num pequeno apartamento de dois quartos, vizinho à futura residência.

Da visita, restou-me uma lembrança vívida de infância, fixada graças a um instante de terror.

Um desenho de quatro lobos com bocas e olhos abertos com traços pretos e vermelhos sobre um fundo bege
Marta Mello/Folhapress

Era noite, eu bebia água na cozinha, quando minha colega, não sei se por sadismo ou inconsequência, abriu a porta da área de serviço.

Do buraco escuro, surgiram as cabeças de quatro dobermans enfurecidos. Na falta de metros quadrados, haviam socado os monstros lá. As bocarras pareciam pertencer a um só corpo. Cérbero enclausurado na antessala do inferno. Acabou para mim, pensei.

Fui salva pela cozinheira, que me puxou para trás e, a duras penas, empurrou os demônios de volta para a jaula. Num primeiro lampejo de consciência social, me dei conta de que a pobre dormia no quartinho de empregada em meio às feras.

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O pânico dos temíveis cães de guerra manteve viva a recordação. E ela tem me servido de tradução para este ano pandêmico, pela mescla de confinamento forçado, endividamento familiar, desigualdade social e bestas raivosas.

Os jornais acompanham a curva da Covid, o mapa do Brasil todo em vermelho. E parece reprise, não fosse a angulação que impulsiona a linha da contagem de mortes para o infinito e além.

Na rua, meu filho de 13 anos foi assaltado por um menino pouco mais velho do que ele.

Durante a peste, o número de garotos sem horizonte e escola quintuplicou nas esquinas do Rio.

A situação da minha amiga era transitória. Ela e os seus enfrentaram o aperto e as dívidas, certos de que um futuro melhor os aguardava. O mesmo não se pode dizer do Brasil.

Fechado para o resto do mundo, o país se transformou numa panela de pressão social, política, econômica e sanitária. E nem a vastidão do território tem conseguido aplacar a sensação de clausura de se viver aqui.

A aventada substituição do ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, pela cardiologista Ludhmila Hajjar surgiu como uma lufada de ar fresco no ambiente viciado.

Em entrevista, ela descreveu as medidas que planejava implementar, caso assumisse: urgência na vacinação, unificação de um protocolo de internação e intubação de pacientes, aprovação de novos fármacos e formação de comitês de crise para melhorar a comunicação entre União, estados e municípios. O espinhoso debate sobre a restrição de circulação de pessoas foi evitado.

O encontro com o presidente, no entanto, culminou não só na recusa ao cargo, como em ameaças à integridade moral e física da doutora. Soltaram os cachorros em cima dela.

Hajjar foi difamada nas redes, importunada no celular e ameaçada de morte, sem que o governo proferisse nenhuma palavra de repúdio às agressões. Enquanto isso, Felipe Neto era intimado a depor com base na Lei de Segurança Nacional, por usar a palavra genocida.

E ficam as perguntas: Qual lei nos protege da fixação anal, da saraivada de hemorroidas, trosobas e rabos de todo dia? Qual portaria proíbe o riso de escárnio, a indiferença diante da morte, o desprezo pelo uso da máscara, a falta de vacina e a homofobia que considera maricas quem teme o vírus? Quem nos defende de uma política externa que se orgulha de transformar a nação em pária?

Nunca desejei morar fora do Brasil, minha profissão tem relação intrínseca com a língua e a cultura do meu país, mas a angústia busca saídas e confesso que a possibilidade da fuga tem me martelado a testa. Em meio ao milagre da multiplicação de cepas, cheguei a planejar uma louca escapada via Uruguai, México, Afeganistão, Albânia e Iraque, a magra lista de países que ainda aceitam cidadãos daqui.

Abandonei a ideia infeliz depois de ler o artigo de Marilene Felinto “Passaporte português”, na Folha. Concordo com ela. É horrível imigrar.

Seremos sudacas na Espanha e chicanos na América.

Qualquer brasileiro, por mais louro de olho azul que pretenda ser, carrega a tragédia nacional nas costas. O jeito é encarar.

Esquece direita e esquerda, capitalismo e comunismo, Estado e iniciativa privada. É civilização ou barbárie.

No sufoco desse apartamento apinhado do que resta das tantas repúblicas, Cérbero precisa voltar ao canil do Tártaro.


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