25.mar.2021 às 16h00
De um lado, as orientações sanitárias indicam que as pessoas devem ficar em casa para conter a disseminação do coronavírus e frear o número de mortes no auge da pandemia.
Do outro, a fome. A falta de emprego e auxílio emergencial leva parte da população às ruas para tentar colocar comida na mesa. Uns saem para trabalhar, outros vão atrás de doações. Independente do caso, a conta não fecha.
Vanessa Pereira, 40, moradora de Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, une os dois mundos. Ao passo em que tenta se proteger da contaminação, precisa sair de casa diariamente para vender balas e água nas ruas do centro da cidade e buscar doações para alimentar dois dos nove filhos que ainda vivem com ela.
Os gêmeos Enzo Gabriel e Emanuelly Vitória, 6, são criados por ela e pelo atual marido, Flávio Alessandro, 40, que perdeu o emprego como operador de máquinas em eventos no início da pandemia. Desde então ele está buscando bicos como pedreiro, mas não consegue encontrar trabalho.
Sem movimento nas ruas para conseguir vender e sem auxílio do governo, a saída é pedir. Naquela tarde fazia dois dias que Pereira estava sem gás em casa. Não tinha almoçado, para garantir que os filhos fariam as três refeições.
“Hoje mesmo se eu falar que eu almocei eu ainda não almocei. O meu marido comeu um pão que ele trouxe da rua e é assim que a gente tá vivendo. Sobrou um pouquinho de arroz na panela e um pouquinho de feijão para dar à noite para os meus filhos”, conta. O cardápio é sempre o mesmo: arroz e feijão, sem mistura. Vez ou outra comem ovo, “mas é muito difícil”.
O auxílio emergencial era a garantia de que Pereira iria manter sua família. Com as parcelas de R$ 600 somadas aos R$ 212 que recebe do Bolsa Família, conseguia pagar o aluguel de R$ 500, as contas e comprar algo no mercado. Depois, com o pagamento no valor de R$ 300, não comprava comida nem pagava as contas, mas ao menos garantia o teto. Com o aluguel, atrasado vai ter que entregar a casa e ainda não sabe para onde ir.
Em março completam-se três meses desde que a última parcela do auxílio emergencial foi paga. Foi aprovada uma nova rodada com valores de R$ 175, R$ 250 e R$ 375, mas só serão liberados em abril.
Reportagem da Folha mostrou que com o valor médio do novo auxílio, o beneficiário conseguirá comprar, em São Paulo, 39% de uma cesta básica de alimentos, calculada em média em R$ 639,47 na capital paulista. Enquanto isso, as desigualdades são aprofundadas e a fome aumenta.
O fim do auxílio afetou também o trabalho desenvolvido por Gilson Rodrigues, 36, líder comunitário em Paraisópolis, segunda maior comunidade de São Paulo, e presidente do G10 Favelas. Enquanto as doações que mantêm a distribuição de marmitas e cestas básicas caíram vertiginosamente, a busca por comida aumentou.
Todos os dias, entre 500 e 700 pessoas são alimentadas com quentinhas distribuídas na sede do G10 em Paraisópolis. Tem dias que a comida acaba e a fila continua.
No auge da distribuição, cerca de 10 mil marmitas foram dadas em um só dia. Hoje, a escassez de doações faz com que famílias tenham que dividir uma ou duas refeições entre todos os moradores da casa. Em 2020, cerca de 120 mil cestas básicas foram distribuídas. Este ano, a doação de cestas é um desafio.
São 16 mil pessoas cadastradas no Emprega, programa que conecta moradores desempregados com oportunidades. Ao menos 8.000 precisam de comida. O trabalho é desenvolvido desde antes do início da pandemia, mas ficou mais intenso com a crise sanitária.
“O cenário da fome na favela é antigo. Ele foi só evidenciado com a pandemia. Com a falta de políticas públicas ele vai se agravando ainda mais, mas não havia essa quantidade de pessoas e essa demanda tão grande. Agora precisamos de mais ajuda”, conta Rodrigues.
Dados da pesquisa “A favela e a fome” do Data Favela, uma parceria entre o Instituto Locomotiva e a Cufa (Central Única das Favelas), mostra que a média diária de refeições entre os moradores de comunidades é de 1,9 por dia.
Pelo menos 8 em cada 10 famílias não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza, ou pagar as contas mais básicas caso não tivessem recebido doações.
Patrícia Jesus, 33, mantinha a casa como atendente em um restaurante. Moradora de uma ocupação na Chácara Maria Aparecida, em Mauá, ela perdeu o emprego no início da pandemia, quando a doença respiratória do filho Lucas, 16, uma bronquite severa, os forçou a ir constantemente ao hospital. Equilibrava a atenção com a saúde dele com os cuidados com os filhos mais novos, João, 5, Estevão, 4, e a Caterine, 2.
Para buscar sustento, Jesus começou a fazer faxinas. Com a piora da crise, mal conseguia tirar R$ 300 por mês. Começou cancelando a internet, terminou trocando itens da própria casa em troca de alimentos para os filhos.
Trocou chapinha, liquidificador e secador de cabelo por leite, arroz, feijão e óleo. Ela tenta fazer trocas porque está difícil conseguir doações. Sem Bolsa Família e auxílio emergencial, não tem renda. Nas redes sociais, faz postagens oferecendo algo em troca de alimento.
“Às vezes aparece uma pessoa boa e fala 'não, vou te doar'. E outras pessoas que não estão numa situação muito boa falam que podem ajudar trocando, sabe? É assim que eu tenho mantido eles para não chegar ao ponto de dizer que estamos morrendo de fome”.
Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística) revelam que o agravamento da fome no Brasil é anterior à pandemia, quando quatro em cada dez famílias viviam em insegurança alimentar. A crise sanitária, no entanto, está levando a fome a uma situação trágica.
No caso de São Paulo, para Renato Maluf, ex-presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e professor do CPDA/UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), a pandemia no estado gera um impacto crescente na fome.
“Eu posso afirmar que junto com o agravamento da pandemia em São Paulo, que pelos dados é muito grande, certamente há um agravamento da insegurança alimentar”, diz.
A insegurança alimentar, por sua vez, trará consequências imediatas para a população, que precisa se expor para buscar comida. “Milhares de mortes evitáveis, pessoas padecendo dos efeitos do contágio, um sistema de saúde colapsado e um prejuízo econômico maior do que o imaginado”.
Efeitos sentidos principalmente entre a população pobre.
“A pandemia afeta mais fortemente os mais vulnerabilizados, que são aqueles em insegurança alimentar. Então posso afirmar que a pandemia amplia a insegurança alimentar dos setores vulnerabilizados, porque perdem renda ou porque tem dificuldade de acesso aos alimentos. A relação entre a crise sanitária e a crise alimentar já era esperada”, completa.
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