segunda-feira, 29 de março de 2021

Em carta, escritora se despede de irmão morto de Covid aos 49 anos, FSP

 Daniela Arbex

Nunca pensei que me despediria tão cedo de você. Esse seu combinado com a espiritualidade nos pegou de surpresa. Você foi esperto. Passou por aqui como um meteoro, só pra encher nosso coração de amor e nos deixar com as melhores lembranças.

A começar por essa foto de dezembro de 2018, que olho agora, quando existiam abraços e sonhos pra gente sonhar. Era um mundo sem pandemia, leve, feliz.

Você tinha organizado essa viagem até a Bahia. Me lembro bem desse dia na praia. Era um final de tarde e, você, que há anos não pedalava, resolveu nos acompanhar em um pedal na areia. Não aguentou nem um quilômetro. Colocou os bofes pra fora no seu melhor estilo “véio”. Depois, fizemos uma foto sua ao entardecer: “O velho e o mar”, você disse.

Daniela Arbex está ao lado do irmão em uma praia, com o mar ao fundo. Os dois estão de pé, e ela segura uma bicicleta. Ela está de calça justa escura e regata em tom avermelhado e óculos escuros. Ele está de bermuda e camiseta azuis e boné
Daniela Arbex e o irmão, Alessandro, em viagem à Bahia, em 2018 - Arquivo pessoal

Desde que fui avisada do seu desencarne, antes mesmo de você ter deixado o corpo físico, um filme me passou pela cabeça. O filme da nossa vida (esse enredo você não tinha pensado, né?). Me lembrei da nossa infância na Prainha, em Arraial do Cabo, com a Yuca, o Márdel, a Elaine e a Renata.

Você, tiriça, cismou de vender picolé na praia com o seu Rangel. Aliás, ajudava a puxar os peixes nos arrastões dos pescadores no final de cada tarde. Foi lá que nos tornamos uma dupla de dança imbatível no rock. Dupla também de fugas de casa. Como demos trabalho....

Também me lembro que foi lá que me embolei em uma briga sua com um garoto. Você estava perdendo e eu não podia te ver apanhar. Então, montei no cangote do coitado e mordi as costas dele.

Ao final, levei uma bronca: “puxa, Dani, eu estava ganhando”... Tava nada. Você sempre apanhava e eu ia te defender com a minha bolsinha de palha.

O tempo passou e chegamos à adolescência. De dois, nos tornamos três. A Lívia desembarcou nas nossas vidas pra ficar. Apresentei vocês, na escola, e nunca mais se desgrudaram. Você tinha encontrado o seu amor aos 15 anos.

Aos 22, quando se casou com ela e ainda tinha cabelo, parecia um príncipe com seu terno branco. Lívia também estava linda com um penteado de flores. Que dia feliz. Na festa estavam nossos grandes amigos da Casa do Caminho, aqueles com quem aprendemos que a prática do bem é caminho para a felicidade. Aqueles que se tornariam irmãos de uma existência.

Anos depois chegaram Estêvão, Gabriele e Bernardo, seus filhos. E nós continuamos absolutamente presentes na vida do outro. Muito tempo depois, eu conheci o Marco, me casei. Diego, meu filho, chegou um mês depois do nascimento do seu caçula. Eles cresceriam juntos, como nós dois.

Em 2015, fizemos o nosso documentário, "Holocausto brasileiro", uma de nossas melhores parcerias profissionais. Afinal, seguimos caminhos parecidos: eu no jornalismo e você no audiovisual.

Alessandro Arbex, 49, produtor executivo, morto por complicações da Covid-19 - Álbum de família

A estreia nos cinemas do Rio nos emocionou. Não havia lugares vazios na plateia. Sentamos no chão para assistir ao nosso filme. E sonhávamos em fazer juntos o filme sobre a vida de Dona Isabel. Aliás, era o que você sempre quis: contar a história dela.

Esse último Natal foi o primeiro que passamos separados por causa da Covid-19. Eu não te abracei. Quando você contraiu Covid, senti que alguma coisa aconteceria. Da internação ao desencarne passaram-se apenas oito dias.

Não pude te dar um beijo. Não pude sequer segurar sua mão. Então, pedi ao Marquinhos, nosso grande amigo médico, que dissesse a você o quanto o amava. Ele entregou meu recado horas antes da sua partida.

Hoje acordei com muita saudade. Sei que sua ausência é apenas física. Sei também do tanto que você poderá fazer na sua nova jornada espiritual. Obrigada, meu irmão, por ter ficado comigo durante meus 47 anos. Sei que continuará ao meu lado sempre, dos nossos pais, nosso irmão mais novo, de sua esposa e filhos. Nós ficaremos em casa. Você é um felizardo. Já está em casa, no verdadeiro lar. Receba agora, em espírito, o beijo que eu não pude dar.

*

Alessandro Arbex, 49 anos, pai de três filhos, morreu na última quinta (25), vítima de Covid-19

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