Em “Casa Tomada”, Julio Cortázar escreve sobre um casal de irmãos que percebe sua imensa moradia sendo lentamente invadida. Os estranhos, jamais visíveis, mas sabidos pelos seus sons, aos poucos vão ocupando os cômodos enquanto o narrador e sua irmã se refugiam nos espaços que conseguem preservar.
Mal saído da adolescência, li o conto em uma sala de espera. Ao meu lado, um senhor, que descobri ser argentino, dirigiu-se a mim e disse: essa é história do peronismo no meu país.
O realismo fantástico, que se tornaria algo cansativo nos anos seguintes, decorreu do encantamento com a literatura que privilegiava as ideias em vez das personagens e seus dilemas. Havia, por exemplo, a influência de Edgar Allan Poe e seus contos mirabolantes, como “A Queda da Casa de Usher”, em que a leitura atenta revela as causas sutis do que parecia sobrenatural.
Borges talvez tenha sido o mestre dos argumentos desconcertantes, por vezes decorrentes de temas da ciência ou da filosofia. Com elegância e concisão, ele os transformava em histórias surpreendentes, como nos melhores contos policiais. Mais tarde, muitos, incluindo Cortázar, ampliaram esse exercício em romances intrincados. Engenharia em vez de literatura.
Contudo, naquele seu primeiro conto, concebido antes da posse de Perón, Cortázar experimentou outra arte, a da revelação. A lenta ocupação da casa, a progressiva corrosão das regras em meio a moradores assombrados.
A virulência dos debates atuais reflete a tragédia que enfrentamos. Há demasiados mortos. Há também demasiadas vítimas das intervenções autoritárias de um Estado ora a servir a um senhor, ora a servir a outro. Aos poucos, as instituições são corroídas.
A precariedade do Palácio do Planalto torna o desvario da política externa culpa exclusiva do ministro responsável pelo Itamaraty. Em um estranho jogo de cena, o presidente do Senado assume o ônus da negociação com estados, ainda que a caneta continue com o Executivo.
O Legislativo se refastela frente ao governo que se esfacela. Aprovou-se um Orçamento que revela um Congresso cioso de furar a fila para pegar o bote salva-vidas em um Titanic abalroado contra um iceberg.
Despesas obrigatórias foram grosseiramente subestimadas para viabilizar emendas de parlamentares.
Aumentaram-se os gastos com militares, ainda que não se saiba bem o que fazem. Muitos recursos foram destinados para obras paroquiais, nem tanto para a saúde pública, como sintetizou Marcos Mendes na Folha neste sábado (27).
O Orçamento deste ano parece obra do realismo fantástico. A ver quem arriscará seu CPF para executá-lo. Lentamente, a nossa casa vai sendo tomada.
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