Há um mês o líder do governo na Câmara veio a público com naturalidade defender o nepotismo como política de Estado, como se não constassem da Constituição os princípios da moralidade e impessoalidade, valores-chave da meritocracia republicana – termos antônimos do nepotismo, prática do tempo da monarquia. E há duas semanas o presidente da Câmara quis aprovar sem debate a chamada PEC da impunidade, que blindava parlamentares, vista como retaliação ao STF pela ordem de prisão de Daniel Silveira, que invocou criminosamente nas redes sociais a ditadura, na pregação pela volta do AI-5.
A PEC quer proibir o Judiciário de afastar parlamentares do mandato mesmo se surpreendidos em flagrante matando centenas de pessoas, cometendo pedofilia, estupros em série ou desviando bilhões dos cofres públicos. Tal proposição fere a Constituição e princípios universais da Justiça – refiro-me à inafastabilidade da jurisdição e à separação dos Poderes.
Na semana passada, a novidade desse festival de horrores foi a encomenda pelo presidente da República de pareceres jurídicos sobre a possível decretação do estado de sítio no País, ao mesmo tempo que ele apresenta seu quarto ministro da Saúde (em um ano de pandemia), acusado criminalmente de crime patrimonial.
Depois da tese indefensável das Forças Armadas como poder moderador, repetida por seus seguidores como dogma, agora o presidente fala em estado de sítio em razão da crise da pandemia, mal gerida pela própria Presidência – fato notório internacional. Os quase 300 mil cadáveres e seus erros crassos diários causam mal-estar entre aliados e são reconhecidos até pelo vice-presidente. Sem vacinação maciça não há retomada econômica possível. Ilustração: Chile vacinou 40% de sua população e nós, 5%.
O presidente não aceita a decisão do STF, que nada mais fez do que interpretar a Constituição, afirmando a autonomia dos Estados e municípios nas iniciativas de enfrentamento da pandemia. Bolsonaro quer sufocar os demais Poderes e tornar pó o sistema de checks and balances. Diz ser democrata, mas participou de atos públicos cuja pauta era fechar o Congresso e o STF e no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa seus apoiadores espancaram o repórter Dida Sampaio, do Estado, pelo simples fato de ele cobrir o fato jornalístico. Nenhuma palavra disse sobre o ocorrido.
A última novidade é que um grupo de parlamentares e alguns ministros do STF estariam elaborando profunda reforma de modelo do Ministério Público Federal (MPF). Fala-se em modificação na forma de escolha do procurador-geral da República (PGR) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Em 1988 o MP foi incumbido da defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis, da ordem jurídica e do regime democrático. São papéis vitais para a cidadania brasileira e por isso Dalmo Dallari chama a instituição de advocacia do povo. Aí se inclui o combate à corrupção e isso está incomodando, são criadas pelos atingidos narrativas em abundância todo dia para desqualificar o MP perante a sociedade.
Erros cometidos devem levar a punições, jamais ao enfraquecimento das instituições ou do regramento jurídico anticorrupção, cujo esmagamento está em curso no submundo do poder neste exato instante, na contramão do princípio constitucional da supremacia do interesse público. Refiro-me à lei de improbidade.
Dentre os avanços de 88, o procurador-geral obrigatoriamente deve ser da carreira, para evitar ingerências, manipulações e apadrinhamentos – concurso público meritocrático é garantia do povo.
Pretende-se melhorar o CNMP? Inclua-se ali um integrante proveniente das universidades públicas, apontado por organismo colegiado, sem injunções político-partidárias. Se se quiser de fato a evolução do MP em prol da sociedade, institua-se a votação uninominal, por seus membros, em lugar da lista tríplice, tanto nos Estados como em nível federal. O mais votado seria sabatinado pelo Legislativo, com a presença da sociedade, sendo apresentada a plataforma de trabalho do eleito, de forma transparente, com possível derrubada fundamentada, se for o caso, por quórum de dois terços.
Assim, ouve-se o MP na escolha de seus dirigentes, o que é essencial, e a chancela do nome se faz pelo Legislativo, legitimado pelo voto, desconcentrando-se poder, retirando-o das mãos do chefe do Executivo. Afinal, o presidente fiscalizado hoje escolhe o próprio fiscal. Bizarro seria transformar ministro do STF, integrante de um Judiciário que deve ser inerte por natureza, em PGR biônico simultaneamente. Seria a negação da independência do Ministério Público, ferida mortal na instituição que existe para defender proativamente a sociedade – sonho dourado dos malfeitores.
Querer mudar a regra constitucional para pôr no comando do MPF alguém que não integre a instituição é retrocesso histórico na caminhada republicana, assim como o nepotismo, a decretação do estado de sítio, a blindagem parlamentar ou qualquer forma de concentração de poder, que nos levaria a recuos ainda piores em matéria de liberdade política, como alertou recente relatório da Freedom House.
DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROCURADOR DE JUSTIÇA, É O IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO
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