segunda-feira, 15 de março de 2021

MARIA TEREZA AINA SADEK - Voto em papel: um vírus imunizado no século 20, FSP

 


Maria Tereza Aina Sadek

Professora do Departamento de Ciência Política da USP

Tudo parece irrelevante diante das mais de 270 mil mortes por Covid-19 e da tragédia de cidadãos morrendo por falta de oxigênio. A pandemia abalou gravemente o sistema de saúde. O impacto se propagou. Nada permaneceu incólume. A desigualdade aumentou; vieram à tona 40 milhões de invisíveis; escolas foram fechadas; indicadores econômicos sofreram queda; a divisão entre partidários e contrários ao governo federal se aprofundou; o vírus foi politizado; especialistas se defrontaram com charlatões; a ciência disputou espaço com negacionismo; proliferaram fake news.

Nesse contexto, medidas urgentes contra a disseminação do vírus enfrentaram barreiras, desde a desinformação e o obscurantismo até disputas federativas, mudanças de ministros e na condução de políticas de saúde. Apesar da premência de soluções, o foco na crise sanitária muitas vezes foi deslocado. Outros vírus foram espalhados. Dentre eles, a desconfiança na urna eletrônica e a demanda por voto impresso.

Esse vírus tem potencialidade de infectar um dos mais importantes pilares do regime democrático: a legitimidade da representação.

No Brasil, a Justiça Eleitoral é responsável por garantir a lisura das eleições, atuando no alistamento dos cidadãos, na inscrição de candidatos, na organização das eleições, na apuração dos votos, na diplomação dos eleitos. Sua criação visava resolver a situação retratada por Assis Brasil: “Ninguém tinha certeza de se fazer qualificar, como a de votar (..) Votando, ninguém tinha certeza de que fosse contado o voto (...) Uma vez contado o voto, ninguém tinha a segurança de que seu eleito havia de ser reconhecido através de uma apuração feita dentro da Casa Legislativa”.

O Código Eleitoral de 1932, além de ampliar as franquias, com o voto feminino e a redução da exigência para 18 anos de idade, criou uma instituição judiciária, formalmente independente dos poderes políticos, com a finalidade de dar garantia ao voto. A Justiça Eleitoral representa um ponto de inflexão na história política brasileira. Cadastros de eleitores tornaram-se menos vulneráveis a fraudes; a apuração dos votos menos propensa a artimanhas, as eleições cada vez mais confiáveis. É claro que nem todos os ardis foram eliminados, nem mesmo se sustenta que a instituição sempre cumpriu suas atribuições de forma exemplar. Mas a diferença entre a realidade de atas falsas, de eleições a bico de pena, de voto de cabresto e a situação posterior é monumental.

Ganhos em confiabilidade se expressaram em momentos críticos durante o regime militar, como em 1974, com a proclamação de resultados eleitorais favoráveis à oposição. Na mesma trajetória, a Justiça Eleitoral teve papel decisivo no processo de redemocratização do país com a decisão, em 1985, que garantiu os votos no Colégio Eleitoral em Tancredo Neves contra o candidato da situação, Paulo Maluf.

O processo de institucionalização e conquista de credibilidade nem sempre foi bem-sucedido. O caso conhecido como Proconsult, para impedir a vitória de Brizola em 1982, ficou registrado nos anais.

Desde então, saliente-se, contestações dos resultados tornaram-se episódicas. A adoção da urna eletrônica em 1996 contribuiu para a consolidação da Justiça Eleitoral. Já são mais de uma dezena de eleições, de consultas populares, sem qualquer indício ou comprovação de fraude. O sistema de controle é robusto, com testes com a participação de especialistas; funcionamento de forma isolada do software; antes das eleições, os sistemas são apresentados aos partidos políticos, ao Ministério Público, à OAB e entidades; há previsão de momentos de auditoria.

Críticas fundamentadas ao desempenho da Justiça Eleitoral não se referem à administração e ao controle do processo eleitoral, mas a seus avanços sobre o Poder Legislativo.

Desacreditar a apuração dos votos e antecipar o não reconhecimento dos resultados na eventualidade de derrota compõem uma estratégia de ataque às instituições. O incitamento ao voto em papel, além de claro retrocesso, é a propagação de um vírus com potencial de minar o sistema representativo e a legitimidade dos resultados. Pesquisa do Instituto Locomotiva, publicada em 24 de janeiro, mostra que a maior parte dos brasileiros está imunizada: 76% confiam nas urnas eletrônicas.

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