O estrago que uma ideia ruim faz na sociedade quando ela está errada é enorme. Mas é muito pior quando a ideia – mesmo estando errada – faz sentido, porque a aparência de verossimilhança captura o nosso raciocínio e depois fica difícil, ou mesmo impossível, nos livrarmos dela. Se for superficialmente pintada com um verniz científico, então, suficiente para dar impressão de rigor à primeira vista, a tragédia é certa. Mesmo quando ela for desmascarada gerações inteiras precisarão morrer até que ela seja totalmente abandonada.
No século 19 fez um tremendo sucesso a ideia de que seria possível estudar a criminalidade do ponto de vista estritamente biológico. Seu expoente foi o médico italiano Cesare Lombroso, que se colocou a medir crânios, catalogar orelhas, perscrutar bocas, tudo para encontrar os estigmas da maldade e determinar quem eram os criminosos natos – pessoas nascidas predestinadas para o crime. Soa risível uma visão tão determinista – e de fato ela não resistiu ao teste da ciência, sendo desacreditada muito cedo na Europa onde surgiu.
Mas nossos vieses cognitivos são tão intensos que não conseguimos nos livrar da impressão que algumas pessoas têm “cara de bandido”. E pior, só prestamos atenção nas coisas que confirmam essas intuições enviesadas. Como numa revista em quadrinhos que encontrei esses dias, depois de muito procurar. Havia lido quando moleque um almanaque do Professor Ludovico com a seguinte história: o cientista acaba de concluir uma tese de criminologia (bem lombrosiana), quando um homem bate à sua porta. Ele parece um “criminoso nato”, então o Professor Ludovico acha ser alguém querendo roubar sua tese. No final da história não é nada disso mas – surpresa – trata-se de um assalto comum. A graça é que ser assaltado deixa o Professor bem satisfeito, por confirmar sua teoria.
Não é possível desinstalar os vieses cognitivos de nosso cérebro. Associação sempre parecerá causa, pessoas bonitas sempre darão impressão de competência e assim por diante. A única saída é saber que tais vieses existem e confiar menos em nossas impressões do que no método científico, que surgiu justamente para corrigi-los. Se insistirmos nesse caminho no final a o conhecimento sempre prevalecerá, e em algumas gerações olharemos para diversos tratamentos propostos hoje para a covid19 como olhamos para a medição de crânios de bandidos cem anos atrás: com um misto de dó e culpa.
As excelentes péssimas ideias
POR DANIEL MARTINS DE BARROS
23/03/2021, 13h32
Ideias ruins que parecem boas são as mais destrutivas para sociedade
O estrago que uma ideia ruim faz na sociedade quando ela está errada é enorme. Mas é muito pior quando a ideia – mesmo estando errada – faz sentido, porque a aparência de verossimilhança captura o nosso raciocínio e depois fica difícil, ou mesmo impossível, nos livrarmos dela. Se for superficialmente pintada com um verniz científico, então, suficiente para dar impressão de rigor à primeira vista, a tragédia é certa. Mesmo quando ela for desmascarada gerações inteiras precisarão morrer até que ela seja totalmente abandonada.
No século 19 fez um tremendo sucesso a ideia de que seria possível estudar a criminalidade do ponto de vista estritamente biológico. Seu expoente foi o médico italiano Cesare Lombroso, que se colocou a medir crânios, catalogar orelhas, perscrutar bocas, tudo para encontrar os estigmas da maldade e determinar quem eram os criminosos natos – pessoas nascidas predestinadas para o crime. Soa risível uma visão tão determinista – e de fato ela não resistiu ao teste da ciência, sendo desacreditada muito cedo na Europa onde surgiu.
Mas nossos vieses cognitivos são tão intensos que não conseguimos nos livrar da impressão que algumas pessoas têm “cara de bandido”. E pior, só prestamos atenção nas coisas que confirmam essas intuições enviesadas. Como numa revista em quadrinhos que encontrei esses dias, depois de muito procurar. Havia lido quando moleque um almanaque do Professor Ludovico com a seguinte história: o cientista acaba de concluir uma tese de criminologia (bem lombrosiana), quando um homem bate à sua porta. Ele parece um “criminoso nato”, então o Professor Ludovico acha ser alguém querendo roubar sua tese. No final da história não é nada disso mas – surpresa – trata-se de um assalto comum. A graça é que ser assaltado deixa o Professor bem satisfeito, por confirmar sua teoria.
Não é possível desinstalar os vieses cognitivos de nosso cérebro. Associação sempre parecerá causa, pessoas bonitas sempre darão impressão de competência e assim por diante. A única saída é saber que tais vieses existem e confiar menos em nossas impressões do que no método científico, que surgiu justamente para corrigi-los. Se insistirmos nesse caminho no final a o conhecimento sempre prevalecerá, e em algumas gerações olharemos para diversos tratamentos propostos hoje para a covid19 como olhamos para a medição de crânios de bandidos cem anos atrás: com um misto de dó e culpa.
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Leitura mental
Eu digo e repito que se tem uma coisa que a história ensina é que nós não aprendemos nada com a história. Ainda assim vale a pena conhecer outros momentos em que a humanidade foi dirigida por promessas, ameaças ou simplesmente pela moda para direções que, com o tempo, se mostraram becos sem saída. No clássico A história das ilusões e loucuras das massas (Faro Editoria, 2020), escrito por Charles Mackay no século XIX e relançado agora num momento muito pertinente, somos apresentado a bolhas especulativas, profecias de fim do mundo, guerras religiosas entre outros movimentos no qual embarcamos voluntariamente, para nosso próprio prejuízo como indivíduos e como sociedade. A edição brasileira traz acréscimos de nosso país e exemplos da história recente que ilustram vividamente como, no quesito embarcar em loucuras coletivas, nós não somos diferentes do resto do mundo.
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