sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Senado tem bons motivos para rejeitar Messias no STF, Opiniao FSP

 Jorge Messias ficou nacionalmente conhecido em 2016, quando foi incumbido pela ainda presidente Dilma Rousseff (PT) de entregar a Luiz Inácio Lula da Silva um termo de posse como ministro da Casa Civil. A manobra, frustrada por liminar de Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, daria a Lula, acossado por investigações de corrupção, foro especial no Judiciário.

É na mesma condição de homem de confiança que Messias recebe agora do chefe a indicação para ministro do STF —a condição que já o levou ao comando da Advocacia-Geral da União (AGU) e a diversas outras funções em gestões petistas.

Vá lá que fidelidade e alinhamento político sejam critérios aceitáveis para o preenchimento de cargos estratégicos no gabinete presidencial. Nunca o serão, porém, quando se trata de escolha para a mais alta corte do país.

Em seu terceiro mandato, Lula aprofunda uma prática funesta que aprendeu com o antecessor, Jair Bolsonaro (PL), e aprofundou. Ambos se puseram a aparelhar o Supremo com nomes de menor qualificação jurídica e maior gratidão ao padrinho, enfraquecendo uma instituição republicana essencial e a independência entre os Poderes.

Se Bolsonaro é um autoritário convicto, Lula aprendeu a lição errada e se esqueceu dos acertos de seus dois primeiros mandatos. Por mais que a corte tenha acumulado contradições ao sabor dos ventos políticos nos últimos anos, os ministros selecionados por mérito em gestões petistas anteriores mostraram maiores altivez e independência em momentos cruciais como o julgamento do Mensalão e o impeachment de Dilma.

É perfeitamente legítimo que um presidente indique para o posto alguém com quem compartilhe valores e visões de mundo —há juristas das mais diferentes inclinações à disposição. Nesses casos, a garantia de permanência no tribunal até a aposentadoria compulsória tende a fortalecer a autonomia do escolhido.

Coisa muito diferente é apontar subordinados diretos, amigos e aliados políticos de longa data, como se o STF fosse uma extensão do palácio de governo. Bolsonaro quis um evangélico, André Mendonça; Lula, seu advogado pessoal, Cristiano Zanin.

O freio a essa ambição presidencial espúria, conforme definido pela Constituição, é o Senado Federal, ao qual cabe sabatinar os indicados e deliberar sobre sua aprovação. Há bons e maus motivos para que, desta vez, tal processo não transcorra como uma mera formalidade.

De menos nobre, a cúpula da Casa legislativa já demonstrou sem maiores sutilezas a preferência por um dos seus, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que a chefiou entre 2021 e o início deste ano. Foi apenas essa pressão que retardou o anúncio oficial da indicação de Messias, há muito decidida.

Acima do corporativismo reles, compete aos senadores fazer valer a exigência de "notável saber jurídico" imposta pelo texto constitucional aos ministros do Supremo e, sobretudo, inibir novas afrontas do presidente de turno à independência da corte.

editoriais@grupofolha.com.br

Em 'O Agente Secreto', pesadelos só acabam ao vermos o interditado, João Pereira Coutinho, FSP

 Pergunta: qual o seu momento preferido em "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho?

Compartilho o meu, raramente citado pelas resenhas: a sequência em que o delegado corrupto leva o personagem de Wagner Moura para conhecer o alfaiate alemão. Com que propósito?

Circense —o propósito é circense. O alemão, um veterano da Segunda Guerra Mundial, tem cicatrizes horrendas nas pernas e no peito. Mas o delegado e seus jagunços são incapazes de guardar respeito pela intimidade do homem. As deformidades servem de entretenimento para o público, como se o alfaiate fosse uma aberração de feira.

Quatro homens estão em pé em um ambiente externo, possivelmente em um parque ou praça. Eles estão vestidos de maneira casual, com um deles usando uma camisa azul clara e outro uma camisa marrom. O homem no centro parece estar sendo tocado na cabeça por um dos outros. Ao fundo, há uma estrutura grande e arredondada, que parece ser uma escultura ou um objeto decorativo. A iluminação é natural, sugerindo que é um dia ensolarado.
Cena do filme 'O Agente Secreto', de Kleber Mendonça Filho - Victor Jucá/Divulgação

Nesse momento, lembrei de uma passagem de Nelson Rodrigues em que ele, morto de fome, é convidado por um amigo endinheirado para almoçar. Nelson aceita, esperando comer um filé com fritas.
Azar: o amigo pede fígado para ambos, sem sequer perguntar a Nelson se ele gosta do prato. Nelson não gosta, mas come.

Como lembra meu ilustre colega Martim Vasques da Cunha na obra "A Poeira da Glória", este episódio concentra um dos traços mais dramáticos do Brasil: a ausência de "imaginação moral" —aquela capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, de imaginá-lo como um ser humano digno e autônomo, merecedor da nossa consideração.

E quanto mais alto se sobe na escala social, política e econômica, menor se torna essa virtude diante dos mais humildes.

Em democracia, isso é fatal. Em ditadura, é duplamente fatal: o poder bruto, na sua faceta mais boçal, só tem imaginação para a maldade.

"O Agente Secreto" é um tratado sobre essa imaginação. É um bestiário – e uso a palavra no sentido exato: uma história povoada por animais, humanos ou não humanos, que se revelam a nossos olhos com uma lição devastadora. A violência é a alma do Brasil.

As bestas podem ser cachorros selvagens rondando um cadáver abandonado. Podem ser tubarões devorando pernas —ou assustando os sonhos das crianças. Pode ser um espantoso gato com duas cabeças —minha maior gargalhada na sala, para espanto de meus companheiros de sessão.

Entre os humanos, a bestialidade é ainda pior: delegados homicidas; pistoleiros que matam pelo melhor preço; policiais corruptos; funcionários federais ressentidos e vingativos; até uma perna cabeluda punindo o desejo e a transgressão.

Se Mendonça Filho tivesse nascido séculos atrás, imagino-o como construtor de catedrais góticas —pela exuberância formal e narrativa com que fala do mundo.

Para começar, o mundo da ditadura. Existem duas formas de lidar com regimes autoritários: de forma solene e íntima (a opção de Walter Salles em "Ainda Estou Aqui"); ou retratando a exceção à regra democrática como experiência surreal, febril, alucinante e alucinada.

Mendonça Filho escolheu a segunda opção —e escolheu bem. Regimes autoritários, ao contrário do que pensam os seus nostálgicos, não são exemplos de ordem ou segurança. Pelo contrário: são estados de caos e arbitrariedade, onde a lei não tem vez e os predadores andam soltos.

Sabemos disso na primeira sequência do filme, quando conhecemos Marcelo e, pelo seu olhar, contemplamos o cadáver esquecido junto ao posto de gasolina. A pergunta na cabeça de Marcelo é também a nossa: isso é sério ou é brincadeira?

As duas coisas, aprendemos rapidamente, porque tragédia e comédia se misturam todo tempo. É como o Carnaval em Recife: alegria e festa —e, no final, morrem 91.

O espanto de Marcelo é o nosso espanto: ele, fugindo de um passado perigoso e com a cabeça a prêmio, tenta manter a sanidade, fugir do país com o filho, reconstruir seu futuro longe da violência e da morte.
Mas a energia animalesca das bestas é maior do que o cansaço de Marcelo.

O filme de Mendonça Filho é um dos mais poderosos retratos do Brasil de ontem e de hoje. Mas é também uma acusação aos que não respeitam a memória histórica, ocultando a extensão dos crimes passados.

Não é por acaso que as pesquisadoras que reconstroem a vida de Marcelo, escutando as fitas que ficaram daquele tempo, são impedidas de continuar. Como se a única versão tolerada fosse a versão oficial, amputada, controlada, para descanso dos contemporâneos.

É uma ilusão perigosa: sem confrontar o mal, ele se reorganiza e volta para nos assombrar. Somos, no fundo, como o filho de Marcelo —impedido de assistir ao filme do tubarão e permanentemente visitado por ele durante o sono.

Os pesadelos só terminam quando o menino contempla o interditado.

Lula nomeia homem branco para o STF em pleno dia de Zumbi, Gustavo Alonso ,FSP

 A única inovação política do século 21 foi a catalisação das pautas identitárias na política brasileira. Muitos queriam que Lula escolhesse uma mulher ou um negro para a cadeira vaga do STF. E, no entanto, neste dia 20 de dezembro, feriado de Zumbi dos Palmares, Lula nomeou Jorge Messias como novo membro do STF.

Dois homens de terno apertam as mãos em frente a estantes cheias de livros em uma biblioteca. Ambos sorriem e estão em ambiente interno com móveis de madeira.
Presidente Lula (PT) e o advogado-geral da União, Jorge Messias - Ricardo Stuckert - 20.nov.25/Divulgação PR

Todos sabemos que a política impera na escolha. Presidentes escolhem nomes de sua confiança. O que espanta é que Lula não reconheça como membros de sua confiança pessoas de matriz ideológica identitária, especialmente mulheres e negros, apesar de toda devoção dos identitários ao petismo.

Para entender o desprezo de Lula, é preciso compreender as matrizes da ascensão do identitarismo. Até poucos anos atrás, o identitarismo não era a força política dominante no país.

Foi nas jornadas de junho de 2013 que tudo começou a mudar. Naquele ano pipocaram uma série de manifestações que não estavam no script nem do PT nem do PSDB, os partidos que vinham polarizando a redemocratização do país. Longe de lideranças tradicionais, a sociedade civil se organizou através das redes digitais para, sem pedir licença ao governo nem oposição, colocar suas pautas na ordem do dia. Tarifa zero no transporte, saúde e educação com "padrões Fifa de qualidade". Sem esquecer da crítica à corrupção disseminada em todas as siglas partidárias. Em poucos anos o establishment político, à direita e à esquerda, cuidou de anular essas demandas, "com Supremo, com tudo".

Mas, junto dessas demandas estruturais facilmente anuladas, outras pautas começaram a tomar o centro do debate. Elas de fato já existiam desde o fim dos anos 1960, mas tornaram-se centrais na definição de quem era de esquerda ou direita depois de 2013.

Direitos das mulheres, dos homossexuais, dos negros e de diversas minorias e maiorias excluídas se tornaram o chão do debate na internet, nossa nova arena pública. A ponto de o significado de ser de esquerda no Brasil ter mudado radicalmente. Até os anos 1990, a pauta da reforma agrária era central para definir quem era de esquerda ou direita. A opinião sobre um possível calote da dívida externa também demarcava trincheiras. Nos dias atuais você será mais facilmente identificado às esquerdas se adotar o discurso das minorias, fizer sua mea culpa pública identitária ou cancelar qualquer um que cheire a direita ou liberal.

Questões econômicas, quando aparecem no debate, estão em segundo plano. Na nova arena pública das redes sociais, o cancelamento identitário se tornou a forma primária e agressiva de fazer política.

Seja qual for seu veredito sobre as pautas identitárias, elas não encontraram expressão no meio político tradicional. Este fato grita toda vez que Lula precisa escolher um ministro do STF. O procurador geral (Paulo Gonet) e os dois ministros do STF (Flávio Dino e Cristiano Zanin) anteriormente indicados por Lula se disseram católicos e contra o aborto em suas sabatinas no Senado. Quando Lula indicará uma mulher? Quando indicará novamente um negro retinto? E um ministro gay? Uma ministra que se diga adepta do candomblé, será possível?

Se os identitários de esquerda abdicaram da luta partidária, a direita deita e rola. O PMB (Partido da Mulher Brasileira) existe desde 2015, nas mãos da direita. Também nas direitas, as pautas deixaram de ser econômicas e estruturais para serem culturais. Definimos um bolsonarista mais por ser "a favor da família tradicional", do porte de armas e contra o aborto, do que por sua opinião sobre a taxa de juros.

Jair Bolsonaro foi a expressão identitária da direita autoritária. Inexpressivo deputado por longos trinta anos, foi alçado a salvador da pátria em pouco tempo, ao tomar o elevador das pautas identitárias pela via da extrema direita mais tosca.

Quando teremos uma nova Frente Negra Brasileira, como houve no período varguista? Criaremos vários partidos LGBTs? E um partido que represente o feminismo mais radical e outros mais brandos? Seria interessante ver estas forças políticas se confrontando com a institucionalidade. Qual o projeto dos identitários para a pauta econômica do país? Aí poderíamos ter diversos partidos da causa gay, abraçando a pauta de diversas formas. Outros tantos que representem a mulher, pessoas com deficiência, os indígenas, etc. Quanto maior a institucionalização, mais representatividade democrática. Até para fiscalizar um partido da esquerda tradicional como o PT.

O PT é um partido de velhos. Surgido em outra época, diante de outras questões. Mesmo o PSOL, que abraça enfaticamente as pautas identitárias, não nasceu em função delas.

Aos poucos PT e PSOL foram incorporando as bandeiras identitárias. Mas na hora H, fica claro que Lula não é um deles. Seus vacilos diante das minorias só são tolerados por que os próprios identitários não forjaram partidos institucionais como pontas de lanças de seus movimentos. E ficam reféns da complacência de um senhor de 80 anos mais preocupado com a suposta governabilidade do que com as minorias.

Quando a política institucional entrará de fato no século 21? Até quando Zumbi será desrespeitado?