quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Marcelo Viana - Todo homem bonito é idiota?, FSP

 A querida leitora Vera tem andado de baixo astral, cada vez mais descrente em sua vida romântica: "todo homem que me atrai é um idiota, só os feios são legais!", desabafou. Tentei consolá-la explicando que se trata de fenômeno comum: nas mais diversas situações quotidianas, características que se esperaria que fossem independentes, como beleza e simpatia, aparentam estar negativamente relacionadas —parece que para que uma melhore a outra tem que piorar.

São comuns as queixas de que os livros populares costumam ter baixa qualidade literária, e os livros bons geralmente não vendem bem. Será que as pessoas só gostam de livros ruins?

Um homem e uma mulher posam juntos em um ambiente elegante. O homem está vestido com um terno branco e tem cabelo escuro e barba. A mulher usa um vestido claro e segura um buquê de flores roxas. Ao fundo, há uma parede decorada com quadros e uma iluminação suave, além de móveis clássicos como cadeiras e mesas.
Odete (Debora Bloch) e César (Cauã Reymond) posam para foto antes da cerimônia de casamento na novela "Vale Tudo", da rede Globo - Estevam Avellar/Divulgação/Globo

Outro lugar comum é que pessoas inteligentes têm pouca habilidade social, aqueles que interagem bem em sociedade não costumam ser brilhantes. É a origem do estereótipo do "nerd". Um dia desses um colega que eu não conhecia ficou surpreso porque respondi a seu e-mail. Segundo ele, "matemáticos reconhecidos costumam ser metidos a besta".

Esse fenômeno tem nome: paradoxo de Berkson, em homenagem ao médico e estatístico norte-americano Joseph Berkson (1899–1982), que o identificou pela primeira vez em 1946. Analisando os dados de pacientes em sua clínica, Berkson observou que aqueles que não tinham hipertensão apresentavam um quadro de diabetes e aqueles que não sofriam de diabetes eram hipertensos.

Uma análise superficial levaria a concluir que hipertensão e diabetes devem estar clinicamente relacionadas. No entanto, isso não é verdade: no conjunto da população, as duas enfermidades são independentes. O que acontece, explicou Berkson, é que pessoas saudáveis não se internam! Então, quando atentamos apenas para pacientes clínicos, é claro que aquele que não sofre de uma das doenças deve necessariamente apresentar a outra: caso contrário, não estaria ali.

O mesmo tipo de raciocínio explica os demais exemplos, inclusive a experiência desapontadora da querida Vera. Em seu dia a dia, ela encontra homens de todos os tipos: bonitos e feios, legais e idiotas e, na verdade, essas características são independentes. Acontece que ela não atenta para todos eles, evidentemente: os feios idiotas são rapidamente ignorados. Os bonitos podem ter qualquer tipo de personalidade: na média, são tão simpáticos quanto uma pessoa típica —o que, convenhamos, não é lá muita coisa. Já um feio que atraia a atenção dela é necessariamente um cara muito legal: se não fosse, a Vera nem notaria o sujeito.

Hoje, Berkson é amplamente reconhecido por suas contribuições à bioestatística e à epidemiologia, que desempenharam papel importante na transição da prática médica tradicional, baseada apenas em observações clínicas, para uma medicina mais moderna, apoiada em métodos quantitativos rigorosos.

Mais além do contexto médico, seu trabalho realçou como nossos raciocínios são frequentemente enviesados por estarem baseadas na observação apenas de uma parte das pessoas ou dos fatos, não representativa do total. É desse modo que nascem os estereótipos, e o viés pode prejudicar a qualidade de nossas decisões. A consciência desses fatos e da necessidade de sempre amparar nossas conclusões em ferramentas estatísticas é o melhor antídoto.

Se não aprendemos com os erros do passado, vamos aprender com o quê?, Rui Tavares, FSP

 Já quase no fim da leitura do seu voto favorável à condenação de Jair Bolsonaro e outros réus, o relator Alexandre de Moraes levou-nos para um exercício de comparação histórica, levando-nos a imaginar como seria a aplicação do direito atual brasileiro a acontecimentos históricos passados e o que sucederia se os acontecimentos presentes fossem julgados de acordo com a lei que (ainda) não existia no passado.

A conclusão é que a lei de agora só existe por causa do que aconteceu antes; se ela não for aplicada, o futuro será igual ao passado.

A imagem mostra uma grande bandeira do Brasil estendida no chão, com pessoas ao redor vestindo roupas nas cores verde e amarelo. A sombra de uma mão é projetada sobre a bandeira, formando um gesto de 'ok'. O ambiente parece ser de uma manifestação ou evento público.
Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro em manifestação a favor do político, na avenida Paulista, em São Paulo - Jorge Silva - 3.ago.25/Reuters

Costuma-se dizer que os historiadores imaginam o passado e se lembram do futuro. Mas o mesmo se passa com todas as pessoas e também com os coletivos humanos. O resgate do passado exige um esforço de integrar as memórias para delas fazer sentido numa narrativa; e o uso da memória serve-nos para prever situações no futuro que queremos evitar ou desejamos repetir.

Assim também uma república, uma democracia, um país se perguntam permanentemente: o que fizemos no passado, em que erramos e acertamos, e como podemos fazer para que no futuro possamos continuar os mesmos, mas fazendo diferente?

Na verdade, esta questão tem sido a central da nossa última década, década e meia. Temos vivido sob dois impulsos contraditórios. Por um lado, a ideia de que devemos aprender com os erros do passado. Por outro, a ideia de que a história não se repete. Ambas são verdade, em sentidos diferentes, ético o primeiro, ontológico o segundo. Mas se levados em sentido absoluto eles se contradizem e nos deixam numa aporia: para quê aprender com os erros do passado se a história não se repete?

Daí a discussão aparentemente interminável sobre se estamos assistindo ou não ao regresso do fascismo. Para aqueles que dizem que temos de aprender com os erros do passado, parece evidente que o termo "fascismo" deve ser entendido como designação genérica de uma das patologias históricas que afetam as democracias.

Para os que afirmam que a história não se repete, haverá sempre uma razão para não aceitar que os fenômenos de hoje sejam fascismo, em sentido restrito. Se ficarmos à espera de que os fascistas de hoje usem um chapéu com penacho, isso provavelmente nos impedirá sempre de reconhecer o seu regresso. Tudo o resto, porém, vai regressando: o culto da violência e da irracionalidade, a formação de milícias físicas ou digitais, a idolatria do chefe e a sede da concentração de poder, até o fascínio pela ditadura e a prática do genocídio. De fato, a história não se repete… naquilo que é irrelevante.

Como dizia o meu professor António Hespanha, nos raros momentos em que moralizava sobre a história: eles não eram mais estúpidos do que nós. No passado, algumas das piores desgraças da humanidade foram justificadas pelos melhores políticos, negociadas pelos melhores diplomatas, lideradas pelos melhores generais.

Da mesma forma, nós não somos mais inteligentes do que eles. Temos apenas uma vantagem: a de podermos imaginar o seu passado, ao passo que eles não se lembraram do nosso futuro. Usemos a vantagem que temos. Se não formos aprender com a história, vamos aprender com o quê?


Um conto histórico de esquerda, Deirdre Nansen McCloskey, FSP

 Estou escrevendo um livro extenso sobre o movimento de "cercamentos" dos anos 1700 na Inglaterra.

Muitas pessoas instruídas, especialmente as que leram Marx, ouviram falar sobre cercamentos. A maior parte do que sabem não é verdade.

O cercamento inglês foi uma espécie de reforma agrária, mas afastando a terra dos pequenos proprietários, não a aproximando deles. Isso tem um papel importante nas convicções políticas da esquerda em todo o mundo. O grande historiador de esquerda E. P. Thompson (1924-1993) declarou que o cercamento foi "um caso bastante claro de roubo de classe". Segundo ele, era um Robin Hood ao avesso: roubar dos pobres para dar aos ricos.

Tais coisas acontecem, claro. Os ricos são bons nisso. Mas a história que a maioria das pessoas instruídas acredita conhecer sobre cercamentos está errada.

A história é que os cercamentos arrancaram os trabalhadores das aldeias e os empurraram para as fábricas, onde foram horrivelmente explorados. A Revolução Industrial, dizem, foi criada pelo movimento de cercamentos, fornecendo sua força de trabalho.

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Nada nessa história é verdadeiro. Na verdade, o cercamento elevou o número de trabalhadores nas aldeias. É lógico que o aumento da produtividade agrícola manteria ou atrairia trabalhadores para implementá-la. E os cercamentos não economizavam mais mão de obra do que terras.

A imagem mostra um pôr do sol com um céu laranja e amarelo, onde várias ovelhas estão visíveis em silhueta no primeiro plano. As ovelhas estão espalhadas pelo campo, enquanto o sol se põe ao fundo, criando um efeito de luz suave e quente.
Ovelhas em fazenda em Glastonbury, sul da Inglaterra - Dylan Martinez - 19.jan.17/Reuters

Sir Thomas More, escrevendo no início dos anos 1500, falou famosamente de "ovelhas comendo homens".

A criação de ovelhas, com poucos pastores, substituiu o cultivo de trigo, que empregava muitos trabalhadores. Mas isso não é verdade na Inglaterra dos anos 1700.

O cultivo ineficiente de trigo foi substituído pelo cultivo eficiente, não por alguns pastores. E, de todo modo, a geografia está errada. As fábricas ficavam no norte da Inglaterra, não no sul, onde os cercamentos ocorreram. Ninguém se mudou do sul para o norte. Os trabalhadores das fábricas vinham da Irlanda ou do norte, áreas sem cercamentos.

A reação do século 19 ao "capitalismo" alimenta a suspeita moderna de que deve haver algo errado com os ricos e seus lucros. Essa suspeita é antiga, na verdade. Um carcereiro no século 13 desprezou os apelos de um rico por misericórdia: "Ora, mestre Arnaud Teisseire, você se deleitou em tanta opulência! Como pode não ter pecado?". As pessoas sentem satisfação ao falar sobre cercamentos, ricos pecadores ou outras histórias da esquerda, exibindo um cinismo inteligente.

Economistas liberais primários explicam que as fortunas grotescamente grandes de Eduardo Saverin ou Elon Musk são um sinal e incentivo temporário, mas necessário, à inovação. A receita, se não for bloqueada por corrupção política, distribui os benefícios para nós, consumidores. Máquinas a vapor. Aço barato. Celulares. Facebook. E cercamentos.

O Nobel de Economia William Nordhaus estima que só 2% do ganho com inovação nos EUA desde a Segunda Guerra ficaram nas mãos de inovadores como Saverin ou Musk —98% vieram para nós.
Pela primeira vez na história da humanidade, muitos de nós aceitamos, desde os anos 1700, em grande escala, o Acordo Burguês —"Deixe-me em paz e eu o tornarei rico".

Então aconteceu.