quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Maria Hermínia Tavares A direita sai na frente, FSP

 Em 1976, em pleno regime militar, o deputado Ulysses Guimarães, o combativo líder do MDB, procurou o Cebrap, centro de pesquisas paulista dirigido pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Doutor Ulysses, como apreciava ser chamado, queria que o auxiliassem a fazer uma espécie de cartilha programática para alinhar o discurso dos candidatos que se aventuravam a disputar Prefeituras e cadeiras nas Câmaras Municipais pelo partido de oposição ao autoritarismo.

Nas conversas com o grupo de Cebrap disposto a apoiá-lo, ele não exibia otimismo. Estava ciente dos obstáculos criados pela ditadura à livre competição eleitoral. Mas perseverou por ver na disputa pelo voto um meio de ancorar seu partido nos municípios e tornar visível o difuso mal-estar com o autoritarismo. O sistema bipartidário facilitava a tarefa, ao separar simpatizantes da ditadura dos descontentes com o regime.

Com a volta à democracia e o surgimento de um sistema multipartidário fragmentado, o pleito municipal perdeu a capacidade de dar o recado dos eleitores ao país e aos governantes. Assim, os resultados das urnas são de difícil interpretação, dando margem a controvérsias sobre quais seriam os ganhadores ou os perdedores

A imagem mostra um debate eleitoral com cinco candidatos em pé atrás de púlpitos. Ao fundo, há um telão com a inscrição 'BAND ELEIÇÕES 2024'. O ambiente é bem iluminado e moderno, com um design tecnológico.
Os pré-candidatos à Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos (PSOL), Ricardo Nunes (MDB), José Luiz Datena (PSDB), Tabata Amaral (PSB) e Pablo Marçal (PRTB) se enfrentam no debate da Band. - Bruno Santos/Folhapress

A leitura fica mais fácil quando se olha para as capitais e maiores municípios e quando os partidos são agrupados em três frondas político-ideológicas: direita, centro e esquerda. Na mais recente disputa local, em 2020, candidatos das diversas siglas que formam a variada direita brasileira prevaleceram em 12 capitais, ante nove conquistadas pelos centristas e cinco pela esquerda.

Utilizando um agregador de pesquisas eleitorais, o IPESP-Analítica, voltado para o estudo da opinião pública, mostra que, na disputa de outubro próximo, os candidatos do bloco da direita lideram as intenções de voto em 73% das capitais e 63% das cidades com mais de 200 mil eleitores. Já a esquerda é a primeira opção dos prováveis votantes em 15% das capitais e pouco menos de 23% das grandes cidades. O centro, com o colapso do PSDB, encolheu desde a última eleição nos dois tipos de municípios. União Brasil e PSD são os partidos com maior número de candidatos que lideram as sondagens. O PL de Bolsonaro vem a seguir.

É claro que a corrida está apenas começando e que as campanhas podem mudar as preferências dos cidadãos. O que as pesquisas mostram é algo tão sabido quanto incômodo para os progressistas. A direita é boa de voto e dominante no andar térreo do edifício político. Vem daí o seu cacife em outras instâncias nacionais, a começar pelo Congresso – onde ela reina.

Sérgio Rodrigues - Algoz é aquele que ganha de nós, FSP

 Foi o jornalista Ingo Ostrovsky, amigo de olhar treinado em incontáveis coberturas esportivas, quem me chamou a atenção para o momento de glória vivido nos Jogos Olímpicos de Paris pela palavra algoz.

O uso esportivo de algoz já tem muitos anos de vida, mas pode ter atingido uma apoteose. Só nesta Folha foram 24 ocorrências, quase duas por dia de disputa, e se cito apenas os números da casa é para não aborrecer ninguém. A imprensa esportiva como um todo se mostrou rendida ao modismo.

No Jornal Nacional da última quinta (8), Ingo registrou a aparição de algoz em dose dupla na boca dos apresentadores, o que é significativo quando se considera a dieta vocabular frugal que o principal telejornal brasileiro impõe a Bonner e Renata.

A ideia, convém deixar claro, não é chicotear ninguém, apontando um suposto erro, abuso, essas coisas que os algozes da língua alheia apreciam. Apenas registrar a ascensão de um vocábulo antigo, de sabor um tantinho erudito, e tentar entender o que o seu sucesso quer nos dizer.

Algoz, como se sabe, é sinônimo de carrasco, verdugo, indivíduo que executa uma sentença de morte ou de castigo corporal. Tem registro escrito em português desde o século 14, embora certamente já andasse em circulação antes disso.

Em "al-gozz", que veio no pacote da herança deixada pelos séculos de ocupação árabe na península Ibérica, "al" é artigo e "gozz", pelo que consta, o nome de uma tribo em que se recrutavam carrascos —gente que, por genética ou cultura, devia ser talhada para as artes do sadismo.

Detalhe de quadro que mostra a execução de Maria Antonieta, em 1793 - Reprodução

Ao longo de sua história em nosso idioma, o algoz não ficou restrito a esse sentido primeiro –e, digamos, meio burocrático– de profissional encarregado de executar sentenças de morte e tortura. Passou a ser mais usado nas acepções figuradas de "indivíduo cruel, de maus instintos; atormentador, assassino" (Houaiss).

Foram essas credenciais que levaram o vocabulário do jornalismo esportivo a incorporar a palavra ao seu arsenal de metáforas violentas, até bélicas, onde já brilhavam as figuras futebolísticas do artilheiro, do matador, do tiro de meta etc.

E assim o algoz, criatura adorável, passou a ser empregado para designar o competidor que derrota outro –mais precisamente, o malvado que derrota aquele por quem a gente torce.

Em todas aquelas 24 ocorrências de algoz na Folha, a palavra se referia a quem havia superado um(a) atleta brasileiro(a) –quando não a uma delegação inteira que nos castigara coletivamente, como nas seis referências ao Japão como "algoz do Brasil".

Por alguma razão, quando somos nós os vencedores, a dramática metáfora que conjura um carrasco árabe com sua cimitarra afiada não costuma ser convocada para dar cores sanguinolentas ao noticiário.

A seleção feminina de futebol não foi algoz da Espanha, embora tenha lhe aplicado um chocolate fumegante, mas encontrou sua algoz na seleção americana, que a venceu por um sequinho 1 a 0. Quem quiser ver nisso um traço de coitadismo, pode.

Mas talvez nenhum uso de algoz tenha sido mais marcante, garantindo um lugar de honra para a palavra no vocabulário de 2024, do que aquele feito por Vinicius Jr. em seu tuíte histórico de 10 de junho.

Repercutindo a condenação inédita de três torcedores do clube Valencia a oito meses de prisão por insultos raciais a ele, o craque escreveu: "Não sou vítima de racismo. Eu sou algoz de racistas". Aí sim.

Drauzio Varella - O pódio e o futebol, FSP

 A imagem do pódio com Rebeca Andrade e as duas americanas em posição de reverência é cheia de significados. Não à toa ganhou as páginas dos maiores jornais.

Simone Biles, Jordan Chiles e Rebeca são jovens negras nascidas e criadas em países racistas. Em comum, uma infância que tornaria improváveis carreiras de tamanha repercussão internacional. Apesar das adversidades, ainda meninas, reuniram coragem, determinação e disciplina rígida para atingir níveis técnicos e artísticos que lhes permitiram voar sobre o tablado e encantar o mundo.

Diante da foto, imagino que supremacistas brancos devam experimentar a mesma frustração de Adolf Hitler ao ver o negro Jesse Owens vencer a corrida que lhe deu o título de "o homem mais veloz do mundo", nas Olimpíadas de Berlim de 1936, além de quatro medalhas de ouro, feito inédito na época.

Um atleta está em uma plataforma de medalhas, com os braços levantados em sinal de vitória. Ele usa um uniforme esportivo e calças amarelas. Dois assistentes estão ao seu lado, um à esquerda e outro à direita, ambos agachados e com uniformes azuis. Ao fundo, uma multidão está assistindo ao evento, com luzes e telas visíveis.
Simone Biles, Jordan Chiles e Rebeca Andrade no pódio da ginástica artística - Gabriel Bouys/AFP

A foto das três ginastas no pódio ganhou manchetes na imprensa internacional por encerrar a essência do que chamamos de espírito esportivo: a competição travada contra os limites de si mesmo, não contra as pessoas dos demais competidores. Duas ginastas de altíssima performance, uma das quais considerada a melhor do mundo, ajoelham-se para homenagear a companheira que as venceu. Existiria atitude mais generosa e civilizada?

Que exemplo dignificante essas moças deram às plateias do mundo inteiro. Na era dominada pelas imagens em que vivemos, quantas meninas e meninos serão influenciados pelo exemplo das três mulheres negras no pódio olímpico?

Na infância, fui fanático por futebol. Aos domingos à tarde, escutava o jogo no rádio, sem perder nem uma palavra sequer. Que alegria quando o São Paulo ganhava. Assim que a partida terminava, atravessava a rua para jogar bola na porta da fábrica, com a molecada da vizinhança. Lá, abria mão da minha identidade, virava Leônidas da Silva, o Pelé da época, autor de um gol antológico de bicicleta contra não sei que time.

Na primeira vez em que meu tio me levou para ver o São Paulo, no estádio do Pacaembu, fiquei desapontado. Os jogadores erravam passes, cometiam faltas, caíam no gramado, perdiam gols cara a cara com o goleiro. Na voz do locutor do rádio, meus heróis eram super-homens infalíveis: "Mata no peito, baixa na terra, passa por um zagueiro, pelo outro, invade a área, atira e é ‘goool’!". O interminável "goool" que fazia disparar meu coração.

Naquela ingenuidade infantil, eu não percebia que a prática do futebol privilegia princípios morais indefensáveis. Os jogadores dão péssimos exemplos para a garotada: jogam-se no chão para simular faltas que não receberam, rolam pelo gramado como se sentissem dores excruciantes, fingem contusões para interromper o jogo, apressam-se em cobrar o lateral que pertence ao adversário, chutam a canela dos outros por maldade, reclamam, cercam e vão para cima do juiz por ter apitado o pênalti que todo mundo viu. Quando conseguem enganar a arbitragem, não são considerados mentirosos, mas espertos.

Quem já criou filhos deve ter aprendido que não se educam crianças com palavras, mas com exemplos. De que adianta o pai fumante dizer para o filho que cigarro faz mal? Ou aconselhar a filha a não beber se ele chega bêbado em casa?

Os dirigentes do futebol são coniventes com o mau-caratismo reinante nos campeonatos organizados por eles. Por omissão, muitos cronistas esportivos também. Boa parte dos jogadores profissionais é formada por jovens que não conviveram com exemplos edificantes nas comunidades da periferia em que cresceram. A imensa popularidade do futebol seria ótima oportunidade para criar regras de civilidade esportiva e de cidadania para servirem de paradigmas, capazes de atingir grandes massas populacionais.

No antigo Carandiru, ouvi um preso com muitos anos de cadeia dizer para um carcereiro: "Seu Valdemar, o senhor é justo com a gente, faz sempre o certo. Se quando eu era pequeno tivesse conhecido um homem como o senhor, quem sabe não tivesse entrado para o crime".

Só daqui a quatro anos ouviremos falar outra vez de Rebeca, Simone e Jordan. Elas não fazem ideia de quantas meninas e meninos ajudaram com uma simples fotografia.