Foi o jornalista Ingo Ostrovsky, amigo de olhar treinado em incontáveis coberturas esportivas, quem me chamou a atenção para o momento de glória vivido nos Jogos Olímpicos de Paris pela palavra algoz.
O uso esportivo de algoz já tem muitos anos de vida, mas pode ter atingido uma apoteose. Só nesta Folha foram 24 ocorrências, quase duas por dia de disputa, e se cito apenas os números da casa é para não aborrecer ninguém. A imprensa esportiva como um todo se mostrou rendida ao modismo.
No Jornal Nacional da última quinta (8), Ingo registrou a aparição de algoz em dose dupla na boca dos apresentadores, o que é significativo quando se considera a dieta vocabular frugal que o principal telejornal brasileiro impõe a Bonner e Renata.
A ideia, convém deixar claro, não é chicotear ninguém, apontando um suposto erro, abuso, essas coisas que os algozes da língua alheia apreciam. Apenas registrar a ascensão de um vocábulo antigo, de sabor um tantinho erudito, e tentar entender o que o seu sucesso quer nos dizer.
Algoz, como se sabe, é sinônimo de carrasco, verdugo, indivíduo que executa uma sentença de morte ou de castigo corporal. Tem registro escrito em português desde o século 14, embora certamente já andasse em circulação antes disso.
Em "al-gozz", que veio no pacote da herança deixada pelos séculos de ocupação árabe na península Ibérica, "al" é artigo e "gozz", pelo que consta, o nome de uma tribo em que se recrutavam carrascos —gente que, por genética ou cultura, devia ser talhada para as artes do sadismo.
Ao longo de sua história em nosso idioma, o algoz não ficou restrito a esse sentido primeiro –e, digamos, meio burocrático– de profissional encarregado de executar sentenças de morte e tortura. Passou a ser mais usado nas acepções figuradas de "indivíduo cruel, de maus instintos; atormentador, assassino" (Houaiss).
Foram essas credenciais que levaram o vocabulário do jornalismo esportivo a incorporar a palavra ao seu arsenal de metáforas violentas, até bélicas, onde já brilhavam as figuras futebolísticas do artilheiro, do matador, do tiro de meta etc.
E assim o algoz, criatura adorável, passou a ser empregado para designar o competidor que derrota outro –mais precisamente, o malvado que derrota aquele por quem a gente torce.
Em todas aquelas 24 ocorrências de algoz na Folha, a palavra se referia a quem havia superado um(a) atleta brasileiro(a) –quando não a uma delegação inteira que nos castigara coletivamente, como nas seis referências ao Japão como "algoz do Brasil".
Por alguma razão, quando somos nós os vencedores, a dramática metáfora que conjura um carrasco árabe com sua cimitarra afiada não costuma ser convocada para dar cores sanguinolentas ao noticiário.
A seleção feminina de futebol não foi algoz da Espanha, embora tenha lhe aplicado um chocolate fumegante, mas encontrou sua algoz na seleção americana, que a venceu por um sequinho 1 a 0. Quem quiser ver nisso um traço de coitadismo, pode.
Mas talvez nenhum uso de algoz tenha sido mais marcante, garantindo um lugar de honra para a palavra no vocabulário de 2024, do que aquele feito por Vinicius Jr. em seu tuíte histórico de 10 de junho.
Repercutindo a condenação inédita de três torcedores do clube Valencia a oito meses de prisão por insultos raciais a ele, o craque escreveu: "Não sou vítima de racismo. Eu sou algoz de racistas". Aí sim.
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