quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Drauzio Varella - O pódio e o futebol, FSP

 A imagem do pódio com Rebeca Andrade e as duas americanas em posição de reverência é cheia de significados. Não à toa ganhou as páginas dos maiores jornais.

Simone Biles, Jordan Chiles e Rebeca são jovens negras nascidas e criadas em países racistas. Em comum, uma infância que tornaria improváveis carreiras de tamanha repercussão internacional. Apesar das adversidades, ainda meninas, reuniram coragem, determinação e disciplina rígida para atingir níveis técnicos e artísticos que lhes permitiram voar sobre o tablado e encantar o mundo.

Diante da foto, imagino que supremacistas brancos devam experimentar a mesma frustração de Adolf Hitler ao ver o negro Jesse Owens vencer a corrida que lhe deu o título de "o homem mais veloz do mundo", nas Olimpíadas de Berlim de 1936, além de quatro medalhas de ouro, feito inédito na época.

Um atleta está em uma plataforma de medalhas, com os braços levantados em sinal de vitória. Ele usa um uniforme esportivo e calças amarelas. Dois assistentes estão ao seu lado, um à esquerda e outro à direita, ambos agachados e com uniformes azuis. Ao fundo, uma multidão está assistindo ao evento, com luzes e telas visíveis.
Simone Biles, Jordan Chiles e Rebeca Andrade no pódio da ginástica artística - Gabriel Bouys/AFP

A foto das três ginastas no pódio ganhou manchetes na imprensa internacional por encerrar a essência do que chamamos de espírito esportivo: a competição travada contra os limites de si mesmo, não contra as pessoas dos demais competidores. Duas ginastas de altíssima performance, uma das quais considerada a melhor do mundo, ajoelham-se para homenagear a companheira que as venceu. Existiria atitude mais generosa e civilizada?

Que exemplo dignificante essas moças deram às plateias do mundo inteiro. Na era dominada pelas imagens em que vivemos, quantas meninas e meninos serão influenciados pelo exemplo das três mulheres negras no pódio olímpico?

Na infância, fui fanático por futebol. Aos domingos à tarde, escutava o jogo no rádio, sem perder nem uma palavra sequer. Que alegria quando o São Paulo ganhava. Assim que a partida terminava, atravessava a rua para jogar bola na porta da fábrica, com a molecada da vizinhança. Lá, abria mão da minha identidade, virava Leônidas da Silva, o Pelé da época, autor de um gol antológico de bicicleta contra não sei que time.

Na primeira vez em que meu tio me levou para ver o São Paulo, no estádio do Pacaembu, fiquei desapontado. Os jogadores erravam passes, cometiam faltas, caíam no gramado, perdiam gols cara a cara com o goleiro. Na voz do locutor do rádio, meus heróis eram super-homens infalíveis: "Mata no peito, baixa na terra, passa por um zagueiro, pelo outro, invade a área, atira e é ‘goool’!". O interminável "goool" que fazia disparar meu coração.

Naquela ingenuidade infantil, eu não percebia que a prática do futebol privilegia princípios morais indefensáveis. Os jogadores dão péssimos exemplos para a garotada: jogam-se no chão para simular faltas que não receberam, rolam pelo gramado como se sentissem dores excruciantes, fingem contusões para interromper o jogo, apressam-se em cobrar o lateral que pertence ao adversário, chutam a canela dos outros por maldade, reclamam, cercam e vão para cima do juiz por ter apitado o pênalti que todo mundo viu. Quando conseguem enganar a arbitragem, não são considerados mentirosos, mas espertos.

Quem já criou filhos deve ter aprendido que não se educam crianças com palavras, mas com exemplos. De que adianta o pai fumante dizer para o filho que cigarro faz mal? Ou aconselhar a filha a não beber se ele chega bêbado em casa?

Os dirigentes do futebol são coniventes com o mau-caratismo reinante nos campeonatos organizados por eles. Por omissão, muitos cronistas esportivos também. Boa parte dos jogadores profissionais é formada por jovens que não conviveram com exemplos edificantes nas comunidades da periferia em que cresceram. A imensa popularidade do futebol seria ótima oportunidade para criar regras de civilidade esportiva e de cidadania para servirem de paradigmas, capazes de atingir grandes massas populacionais.

No antigo Carandiru, ouvi um preso com muitos anos de cadeia dizer para um carcereiro: "Seu Valdemar, o senhor é justo com a gente, faz sempre o certo. Se quando eu era pequeno tivesse conhecido um homem como o senhor, quem sabe não tivesse entrado para o crime".

Só daqui a quatro anos ouviremos falar outra vez de Rebeca, Simone e Jordan. Elas não fazem ideia de quantas meninas e meninos ajudaram com uma simples fotografia.


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