segunda-feira, 22 de julho de 2024

Hélio Schwartsman - América iliberal, FSP

 Uma das grandes narrativas de nosso tempo assevera que os EUA, fiéis a suas tradições liberais, não apenas se converteram numa das primeiras democracias do mundo como ajudaram a espalhar esse regime pelo planeta. Tal enunciado, embora tenha algo de verdade, esconde problemas, como toda grande narrativa. Na vida real, as coisas tendem a ser mais complexas e nuançadas, quando não contraditórias.

"Illiberal America", do historiador Steven Hahn, mostra que, se o liberalismo está inscrito no DNA dos EUA, movimentos iliberais também fazem parte da história do país, desde o início e em altas doses. O mesmo comunitarismo —a auto-organização da sociedade em associações, congregações, clubes etc.— que Alexis de Tocqueville viu como fonte do vigor democrático dos EUA está na origem de disposições autoritárias que muitas vezes se converteram em violência.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo, mostra uma cena comum da América colonial, uma forma de punição pública que despia e jogava piche derretido sobre o corpo do uma pessoa para, em seguida, cobri-lo com penas.
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman, esta que será publicada também na versão impressa da Folha neste domingo (21 de julho de 2024). - Annette Schwartsman/Folhapress

Hahn descreve esses movimentos. Há desde os óbvios, como as várias campanhas de limpeza étnica que os colonizadores lançaram contra as populações autóctones, até outros mais sutis, como o formato que a República assumiu a partir do jogo de forças entre federalistas e antifederalistas.

Preconceitos que transitam entre o etnocentrismo, a xenofobia e o racismo sempre estiveram presentes. Pôr indesejáveis para correr cobertos de piche e penas, também. Um elemento bastante forte até os anos 60, o anticatolicismo, quase desapareceu, depois que evangélicos e católicos decidiram unir forças contra o aborto.

O autor mostra ainda que as forças iliberais eram ecumênicas. Grupos indubitavelmente progressistas no século 19 e início do 20 abraçaram com gosto a eugenia. Foi aliás na eugenia americana que Hitler buscou inspiração.

O livro é interessante, altamente informativo e tem uma pegada bem de esquerda. O autor destrincha alguns elementos iliberais no neoliberalismo.

A história é sempre mais complexa do que querem as grandes narrativas.

Revolta contra turistas, editorial FSP

 

Protesto contra o turismo em Barcelona (Espanha) - Emilio Morenatti/AP/picture alliance

Europeus estão se rebelando contra enxames de turistas em cidades como BarcelonaVenezaAtenas e Amsterdã. Nelas, moradores têm organizado protestos contra os visitantes estrangeiros. Na Espanha, pessoas de fora chegaram a ser recepcionadas por locais com "tiros" de pistolas de água.

Há algo de ludismo nesses movimentos. Eles obviamente não expulsarão os turistas e nem interessa aos países que isso ocorra. O velho continente é a região mais visitada do planeta. O setor de turismo representa 10% do PIB da União Europeia, chegando a incríveis 25% em países como a Croácia.

No entanto se o turismo gera enorme bônus, também produz alguns ônus, e a distribuição dos dois não é equânime. Quem se apropria da maior parte dos lucros são as companhias aéreas e marítimas e redes hoteleiras. Proprietários de imóveis para aluguel, donos de restaurantes e de outros comércios e serviços também faturam.

Já o cidadão comum, embora se beneficie indiretamente com o aumento da arrecadação de impostos, é quem enfrenta mais diretamente os efeitos negativos.

O mais importante deles é o fenômeno da gentrificação —uma inflação geograficamente localizada associada à chegada de pessoas com maior poder aquisitivo.

Em Barcelona, os aluguéis subiram 60% em dez anos. Há ainda impactos ecológicos (consumo de energia e água, geração de lixo) e até sobre o sossego público.

Porém, quaisquer que sejam os problemas, a resposta sensata não é atacar visitantes, mas regulação.

O desenho específico depende muito das condições locais, e há várias ferramentas que podem ser utilizadas. A mais óbvia são taxas ou licenças que limitem o número diário de turistas.

Regras mais rígidas para aluguéis de curta temporada, com maior tributação, podem ajudar a conter a especulação imobiliária. O risco neste caso é errar na dose e acabar criando um mercado negro, que só beneficiaria os ilegais.

A regulação existe justamente para lidar com situações de interesses conflitantes. Ela não elimina os desentendimentos, mas pode torná-los administráveis.

editoriais@grupofolha.com.br

Ruy Castro - Para ser um bom biógrafo, FSP

 Aguinaldo Silva, autor de "Tieta" (1989), "Império" (2014) e outras grandes novelas, falou aqui (8/7) sobre a situação atual do gênero. "Os autores da minha geração [Gilberto Braga, Manoel Carlos e outros] eram ativistas, jornalistas, pessoas da rua. Tinham uma forte experiência de vida", afirmou. "Os de hoje são pessoas de classe média, que não tiveram uma vida anterior."

Concordo com ele sobre a importância dessa experiência. É o que tenho dito há anos sobre a prática da biografia.

Perguntaram-me certa vez o que era preciso para que alguém se tornasse um bom biógrafo. Respondi que deveria ser alguém que talvez também rendesse uma boa biografia. Na minha cabeça, ele não teria saído do casulo livresco ou universitário, mas de onde, como foi com Aguinaldo, se cria uma casca grossa para a vida: a rua. De preferência à noite, que é quando as coisas acontecem.

Na minha concepção, isso inclui ter frequentado tanto os palacetes quanto os porões, conhecido toda espécie de gente e corrido da polícia ou de algum marido. Ter amado e sido amado, traído e sido traído, usado o permitido e o proibido. Se possível, sido preso (por motivos políticos, melhor), processado, tido uma doença grave, ter morrido e ressuscitado.

Não quero dizer que sejam itens obrigatórios —outros atributos podem valer tanto quanto—, mas o biógrafo não pode ser um poste limitado a ouvir respostas. Às vezes, terá de arrombar gavetas, assim como a memória dos entrevistados. Não significa também que, por ter tido uma vida pessoal ativa, vá se meter na história e ficar falando de si no livro. Sua experiência servirá apenas para que faça melhores perguntas, descubra pistas invisíveis e não se deixe tapear pelas fontes.

Importante: o biógrafo não pode querer ter sido o seu biografado —por mais que ele seja fascinante e se chame Nelson Rodrigues, Garrincha ou Carmen Miranda.