sábado, 5 de novembro de 2022

Quem paga a churrascada dos protestos golpistas?, Marcos Nogueira, FSP

 


SÃO PAULO

Mortadelas: você se lembra deles? "Mortadela" foi apelido que a direita colou nos manifestantes contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Não faz tanto tempo assim, mas vale refrescar a memória. Os mortadelas vermelhos, na narrativa criada pelos coxinhas, não manifestavam a própria revolta. Eram subornados pelas centrais sindicais com sanduíches frios de embutido de quinta categoria, mais uma garrafa pet de tubaína morna.

Já os outrosautodenominados patriotas, almoçavam a macarronada da mamma (ascendência europeia puro-sangue) antes de tingir a Paulista de verde e amarelo nas tardes de domingo (pois quem atrapalhava a vida do empreendedor durante a semana era vagabundo esquerdopata).

O presidente Jair Bolsonaro segura um pedaço de picanha ao lado do churrasqueiro
Tchê (de chapéu) se apresentou como "churrasqueiro do presidente Bolsonaro" ao convocar seguidores para comer de graça na manifestação golpista de 2/11 em Goiânia - Reprodução

O mundo não dá voltas, capota. Vejamos os protestos "patriotas" da semana subsequente à eleição de Lula à presidência.

Em Porto Velho, o influenciador Rato Andrade Jr. enrolou a bandeira nacional nos ombros e se infiltrou em uma manifestação golpista. Tomou refri e suco –que estava quente, mas logo providenciaram gelo–, comeu salgadinho e arroz carreteiro.

Em Goiânia, nos Dia de Finados, houve distribuição de churrasco para as viúvas da ditadura que zurravam em frente a um quartel. A carne foi doada pelo Frigorífico Goiás, com notável ficha corrida.

O frigorífico, que já teve o cantor Gusttavo Lima entre os sócios, é o mesmo da picanha de R$ 1.799 oferecida a Bolsonaro. É o mesmo que, no dia do primeiro turno, vendeu por R$ 22 a picanha "mito" –e foi autuado por oferecer carne imprópria para o consumo.

O sujeito que assou a carne no convescote golpista goiano é um tal de Tchê – no Instagram do frigorífico, ele se apresenta como "churrasqueiro do presidente Bolsonaro".

Em Rondonópolis (MT), vídeos publicados no Twitter mostram uma churrascada com estrutura semelhante aos eventos itinerantes que cobram mais de R$ 500 pelo ingresso. Várias estações de comida, equipamento de "barbecue" texano e um exército de profissionais paramentados a serviço da patriotada.

A farra do churrasco se repetiu nas estradas bloqueadas pelos conspiradores. Muitas manifestações tinham gerador de eletricidade, banheiros químicos e tendas para se abrigar do sol e da chuva.

Alguém pagou por todo esse aparato –e nem sempre o patrono dos arruaceiros é tão exibicionista quanto os donos do frigorífico que abastece os churrascos de Bolsonaro.

Milhões de reais foram injetados na insurreição criminosa para melar a posse de um presidente eleito pelo voto popular. Os financiadores da conspiração precisam ser todos identificados e punidos.

Quanto à mortadela da CUT, cai por terra um dos últimos discursos moralistas dos reacionários. Ninguém acreditava de fato que um sanduíche xexelento fosse tirar alguém de casa para protestar na chuva.

Era só preconceito de classe.

Bolsonarista tem nojo de pobre. Tolera o pobre que lhe serve, assando um bife ancho de angus certificado para quem pede a volta da ditadura militar.

Enquadrado pelo Supremo, Oscar Vilhena Vieira, FSP

 "Acabou". Essa é a expressão empregada pelo presidente Jair Bolsonaro ao reconhecer sua derrota eleitoral aos ministros do Supremo Tribunal Federal. É significativo que a "rendição" tenha se dado perante um tribunal que não se curvou aos seus ataques, ameaças e desmandos.

Uso o termo rendição pois Bolsonaro sempre teve uma visão degenerada da política. Como outros líderes de extrema direita, Bolsonaro concebe a política não como uma disputa entre adversários, mediada por regras e instituições, mas como uma guerra. Guerra que tem por finalidade eliminar os inimigos e subjugar as instituições voltadas a limitar o poder.

Presidente Jair Bolsonaro durante live em que pediu para seus seguidores desbloquearem as rodovias
Presidente Jair Bolsonaro durante live em que pediu para seus seguidores desbloquearem as rodovias - Bolsonaro no Youtube/via AFP

Há um velho ditado da caserna que vaticina: "Na vida militar, ou você coloca os demais em forma ou te colocam em forma". Ao longo desses quatro anos de governo, Bolsonaro buscou enquadrar o Supremo. Ameaçou desrespeitar suas decisões. Ofendeu de forma vulgar ministros. Atiçou seus acólitos contra o tribunal. Incitou o pedido de impeachment de magistrados. Instigou as Forças Armadas contra o Supremo, insinuando que elas, e não o Supremo, receberam a missão de guardar a Constituição. Derrotado nas urnas e sem o proclamado apoio das Forças Armadas, viu-se obrigado a se submeter à autoridade do Supremo.

Para alguns, o Supremo foi além de suas atribuições nestes últimos anos. Discordo. O Supremo, apesar de seus defeitos, apenas reagiu aos ataques à democracia e aos direitos fundamentais desfechados pelo presidente, cumprindo a atribuição que lhe foi conferida pela mais democrática de nossas constituições.

Uma das mais amargas lições deixadas pela ascensão de Hitler ao poder —reiterada pela nova onda de populistas autoritários— é que o povo pode, pelo voto ou por meio de seus representantes, destruir a democracia e os direitos humanos.

Por essa razão, muitos países que se reconstitucionalizaram após as barbáries da Segunda Guerra, ou as experiências perversas da colonização, da segregação racial, dos regimes militares ou de partido único, optaram por conferir às suas cortes constitucionais a tarefa de defender a democracia e os direitos humanos.

Não se trata de uma tarefa fácil e destituída de riscos. Afinal, tribunais não têm artilharia. Muitas cortes altivas sucumbiram nessa jornada. Outras preferiram se omitir em relação aos avanços autoritários, na esperança de serem as últimas a serem devoradas, para tomar emprestado a imagem de Churchill.

Com audácia, o Supremo não se deixou intimidar e agiu para conter o vandalismo institucional de Bolsonaro e seus aliados. Seus tropeços não o impediram de cumprir sua missão. Essa postura independente só foi possível pela conjugação de três fatores. De um lado, as prerrogativas, garantias e incentivos superlativos recebidos pelo Supremo para servir como guardião da ambiciosa Constituição de 1988. De outro, a musculatura política e institucional adquirida ao longo das últimas décadas, em decorrência das inúmeras crises e insuficiências do próprio sistema político que impuseram ao tribunal a necessidade de tomar decisões com forte impacto político. Por fim, o compromisso da maioria de seus ministros com o Pacto de 1988.

O fato é que o Supremo brasileiro, assim como o Tribunal Superior Eleitoral, não capitulou. Deixou claro à extrema direita que não abriria mão de sua obrigação de defender a Constituição. Que não aceitaria um golpe transvestido de legalidade. Enquadrado pelo Supremo, o presidente finalmente reconheceu sua derrota.

Marcos Mendes É possível reunificar o país?, FSP

polarização política e a tensão institucional precisam ser superadas, como condição necessária para que o país volte a ter estabilidade, previsibilidade e capacidade de negociação, essenciais para retomar o crescimento e vencer as carências sociais. Será possível?

O ponto de partida do novo governo deve ser o reconhecimento de que foi eleito por uma ínfima margem de votos, e que parte significativa da votação obtida veio de pessoas que rejeitam Bolsonaro, mas não endossam as bandeiras do PT. Não há carta branca para fazer o déficit público que quiserem, distribuir subsídios a empresas, recriar PAC e usar o orçamento público como suposto motor da economia. Os possíveis aliados no Congresso até gostarão e lucrarão com essa pauta, mas o fosso em relação à sociedade aumentará.

Será preciso, também, extrair o que há de positivo no posicionamento de quem votou contra. Há demandas legítimas por um Estado menos burocrático e mais eficiente, uma carga tributária menor e menos disfuncional, respeito à propriedade privada, melhoria do ambiente de negócios. Não se pode desconsiderá-las, embrulhando-as com o comportamento de manada, de cunho golpista e regado a "fake news". Quem quer reunificar o país precisa ouvir os reclamos que fazem sentido.

O vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e o senador Marcelo Castro, relator-geral do Orçamento, em reunião para discutir PEC da transição - Gabriela Biló - 03.nov.2022/Folhapress

Não se pode querer revogar tudo o que os dois últimos governos criaram. É verdade que será preciso reconstruir muitas políticas públicas que foram abandonadas. Mas também é verdade que houve avanços significativos que devem ser preservados: as concessões de infraestrutura; os marcos regulatórios de ferrovias, cabotagem e saneamento; a substituição da TJLP pela TLP e o reposicionamento do BNDES; os avanços do governo digital e da desburocratização; entre outras.

Um caminho promissor seria governar com base em metas quantitativas explícitas. O foco do governo seria atingi-las em pelo menos quatro políticas públicas fundamentais: educação, saúde, redução da pobreza e meio ambiente. Metas para as notas a serem atingidas no Ideb, a redução de taxas de morbidade e mortalidade de doenças específicas, de desmatamento, de redução de pobreza. Um quadro claro de metas para cada área, que seriam facilmente acompanhadas pela população e submetidas a seguidas avaliações técnicas.

Por mais óbvio que pareça, um governo focado em metas claras e quantificáveis poderia gerar algumas "revoluções" na gestão pública.

Atualmente, cada setor pressiona por mais dinheiro, na suposição de que mais gastos trazem mais resultados. Porém, muitas vezes, a ineficiência e os interesses corporativos, eleitorais ou escusos consomem o dinheiro sem entregar resultados.

Focar metas quantitativas que representem melhoria concreta da vida das pessoas inverterá o debate político. Em cada avaliação periódica, vai se buscar entender por que uma meta não foi atingida. E só se colocará mais dinheiro se, de fato, o orçamento apertado for o problema principal.

Interesses paroquiais e corporativos ou gargalos operacionais apareceriam como obstáculos ao atingimento das metas, estimulando uma coalizão para superá-los.

Para atingir as metas, estados e municípios poderiam ser incentivados a cooperar nas políticas que exigem articulação entre governos, como o compartilhamento de redes de saúde. Ou a competir, como no caso do desempenho de alunos nos testes padronizados. Esta é a beleza de um federalismo que funciona: a convivência de competição e cooperação. As metas e prioridades ajudariam nas duas direções.

A busca por resultados coletivos relevantes poderia funcionar como um instrumento de união e redução de tensões. O governo federal deveria se colocar como um gestor central do esforço coletivo, não como um pai bondoso que distribui presentes sem custos para ninguém. Os sucessos e os fracassos seriam responsabilidade coletiva, não só do governo.