quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Criar um piso e um teto de reservas cambiais para o BC é perseguir uma ideia exótica e problemática, Claudio Gonçales OESP

 Embora não haja consenso entre técnicos do Ministério da Economia, parece procedente a notícia de que o governo estuda a criação de um regime de metas para as reservas cambiais, com piso e teto, o que vem causando enorme polêmica entre economistas e analistas. O tema é tecnicamente complexo e controverso, com amplas repercussões sobre as políticas monetária, fiscal e cambial, não sendo oportuno tratá-lo em pleno período eleitoral.

Pode-se até discutir se o atual nível de reservas cambiais, de aproximadamente US$ 340 bilhões, é ou não excessivo. Por exemplo, de acordo com um indicador construído pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o montante adequado de reservas para um país como o Brasil estaria entre US$ 224 bilhões e US$ 336 bilhões. Mas criar um piso e um teto de reservas, como meta para o Banco Central (BC) perseguir, é uma ideia exótica e problemática.

Sede do Banco Central; há várias dificuldades para o funcionamento desse regime e a principal é que as reservas variam também em decorrência de eventos externos, fora do controle do BC.
Sede do Banco Central; há várias dificuldades para o funcionamento desse regime e a principal é que as reservas variam também em decorrência de eventos externos, fora do controle do BC.  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Suponha que, para enfrentar uma eventual fuga de capitais, o BC tenha que vender reservas até que elas atinjam o piso legal. Nesse ponto, a autoridade monetária não teria mais munição para enfrentar a crise, pois não poderia mais vender divisas. Pagaria o custo de carregamento, dado pelo diferencial de juros e pela variação cambial, mas do ponto de vista do mercado seria como se estivesse com estoque nulo de reservas.

No caso de as reservas atingirem o teto do intervalo, o mercado cambial também ficaria disfuncional, dado que o BC estaria legalmente impedido de comprar divisas. Ou seja, seria criada enorme volatilidade quando o volume de reservas se aproximasse do piso ou do teto.

Do ponto de vista prático, há várias dificuldades para o funcionamento desse regime. A principal delas é que as reservas variam também em decorrência de eventos externos, fora do controle do BC. Por exemplo, quando os juros nos Estados Unidos sobem, como vem ocorrendo agora, cai o valor de mercado dos títulos do Tesouro norte-americano, onde está alocada parte significativa de nossas divisas, com efeito negativo sobre o valor das reservas. Estas também são afetadas por variações cambiais entre as moedas nas quais estão aplicadas.

Além disso, são necessários estudos cuidadosos antes de se propor um regime que leve o BC a ter que vender parte das reservas cambiais. É preciso avaliar de forma acurada qual é o impacto da eventual redução desse caixa em moeda forte do País, que funciona como um seguro para crises do balanço de pagamentos, sobre o risco Brasil e, portanto, sobre o custo da dívida pública, externa e interna.

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Mesmo que o governo recue da ideia, pois ainda há pessoas sensatas na equipe econômica, principalmente no BC, tudo indica que o objetivo seja forçar a venda de reservas para derrubar a taxa de câmbio e o preço de produtos importados, inclusive combustíveis. Pode não ser, mas isso tem cara de populismo cambial. / ECONOMISTA E DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORES, FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Pedro Fernando Nery - Seguimos sem priorizar o que mais importa para o nosso futuro, OESP

 

Bolsonaro quer recriar o Ministério da Pesca. E o da Indústria, Desenvolvimento e Comércio Exterior. E o da Segurança Pública. Depois de já ter recriado o do Trabalho e Previdência, o das Comunicações.

Lula promete o Ministério da Pequena e Média Empresa. Também o dos Povos Originários. Voltar com o do Planejamento, o da Cultura – este aparece ainda na proposta de outros candidatos.

Lula e Bolsonaro; combate à pobreza infantil é fundamental para o crescimento da produtividade.
Lula e Bolsonaro; combate à pobreza infantil é fundamental para o crescimento da produtividade.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Se o status de ministério revela a prioridade de uma área no País, seguimos sem priorizar o que mais importa para o nosso futuro: há novas evidências científicas de que o crescimento econômico amanhã só virá com políticas públicas robustas para a infância hoje.

No Proceedings of the National Academy of Sciences, pesquisa mostra que crianças de famílias pobres que receberam transferências de renda apresentam maior atividade cerebral. O estudo envolveu centenas delas, separadas aleatoriamente em dois grupos. O grupo que não as recebeu mostrou resultados piores nos eletroencefalogramas.

As mudanças na atividade cerebral “exibem um padrão que tem sido associado ao desenvolvimento de habilidades cognitivas subsequentes”, concluem os pesquisadores de um grupo de universidades que inclui Columbia, NYU e Duke (Troller-Renfree, 2022).

A evidência ratifica outras que mostram que o combate à pobreza infantil é fundamental para o crescimento da produtividade. Déficits no desenvolvimento no início da vida prejudicam o desempenho posterior na escola e, depois, a inserção no mercado de trabalho.

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Já pesquisadores de instituições do governo americano se aproveitaram de um corte arbitrário que determina a elegibilidade ao recebimento de benefícios para investigar seus efeitos (Barr , 2022). Mais recursos no início da vida estariam ligados a melhor aprendizagem no futuro.

Se soa inusitado, a realidade é que um Ministério da Infância passou a existir em vários países ricos. Aqui, mais de 40% das crianças viviam na pobreza já antes da pandemia.

Novas mazelas estampam os jornais, como o abandono da educação (vide o resultado do Ideb) e a fome (lembre-se: o Auxílio Brasil, hoje, é indiferente à presença de crianças na família!). Da academia, uma área que se mostra promissora e ainda a ser absorvida em políticas públicas é a de parentalidade.

Se for para criar um, o Ministério da Infância poderia articular respostas para vários dos principais desafios nacionais e valorizar um grupo de cidadãos que, além da maior vulnerabilidade à pobreza, tem outro atributo: não vota em outubro.

Hélio Schwartsman -Mecanismos legais que evitam catástrofes também impedem avanços, FSP

 


Nas "Odes" (2.10), o poeta romano Horácio aconselha Licínio a não arriscar muito, aventurando-se em alto mar, nem a acovardar-se, nunca se afastando da costa, mas a buscar a moderação, a "aurea mediocritas". O Brasil faz um pouco isso ao criar uma série de mecanismos, formais e informais, que, se não nos deixam avançar muito, também nos protegem de desastres maiores.

O poeta romano Horácio
O poeta romano Horácio - Reprodução

O teto de gastos, até ser arrombado pela atual legislatura, era um desses dispositivos. Trata-se sem dúvida de uma regra burra, que reduz a capacidade do bom gestor de fazer investimentos e até de executar políticas anticíclicas. Mas, enquanto durou, ele ajudou a manter os mercados tranquilos mesmo diante do grave problema fiscal do país. Contribuiu para manter baixa a taxa básica de juros, o que era uma bandeira tanto do empresariado como da esquerda.

Algo parecido vale para as vinculações orçamentárias. É outra regra burra, que engessa o bom gestor e pode até obrigá-lo a gastar em setores onde não há necessidade. Mas, como nossos governantes podem ser ainda mais burros do que a regra, ela acaba preservando a educação e a saúde de cortes inconsequentes.

Se quisermos, até nosso arranjo político segue esse modelo. O centrão cometeu um crime de lesa-pátria ao aliar-se a Bolsonaro em vez de destituí-lo pela via do impeachment. Mas, ainda assim, o grupo político frustrou algumas das propostas do presidente. O mais vistoso desses vetos foi à PEC do voto impresso, que poderia servir de trampolim para um golpe. O presidente também não conseguiu aprovar as maluquices do Escola sem Partido nem alterar a legislação sobre armas (os retrocessos vieram por decreto).

Esses mecanismos pró-mediocridade mostram sua utilidade justamente quando aparece um governante destruidor como Bolsonaro. O problema com eles é que também nos amarram a uma mediocridade não tão áurea, que vai transformando o Brasil num fracasso.