sábado, 16 de outubro de 2021

Com pouca chuva, Sabesp pede mais água do Rio Paraíba do Sul para abastecer São Paulo, OESP

 José Maria Tomazela, O Estado de S.Paulo

16 de outubro de 2021 | 05h00

Apesar das últimas chuvas em algumas regiões paulistas, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) foi autorizada a retirar mais água do Rio Paraíba do Sul para abastecer a Grande São Paulo. A transposição de água para o Sistema Cantareira foi autorizada em caráter excepcional pela Agência Nacional de Águas (ANA) nesta quarta-feira. A retirada havia sido suspensa em 3 de setembro, depois que a companhia bombeou para o Cantareira os 162 milhões de metros cúbicos que estavam autorizados. Outra transposição só deveria ocorrer em 2022.

A interligação dos sistemas através de bombeamento foi adotada após a crise hídrica de 2014, quando o nível do Cantareira baixou ao ponto de não suprir o consumo da região metropolitana. A autorização para retirar água da bacia do Paraíba do Sul é dada quando o Sistema Cantareira passa a operar com menos de 30% do volume útil. Nesta sexta, a capacidade operacional estava em 28,2%.

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Após meses de seca, volume do Sistema Cantareira está abaixo de 30%
Após meses de seca, volume do Sistema Cantareira está abaixo de 30% Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Com a nova autorização, a água será retirada do reservatório Jaguari, na bacia do Paraíba, e repassada para a represa de Atibainha, em Nazaré Paulista, no Cantareira. O início da transposição ainda será definido pelos órgãos envolvidos. A medida vale até 31 de dezembro. O nível das represas do sistema vem caindo desde o primeiro semestre, com a estiagem. As chuvas foram abaixo da média este ano e, mesmo com as últimas precipitações, insuficientes para alterar a situação.

A volta da transposição foi pedida pela Sabesp. Responsável pelo abastecimento de cerca de 8 milhões de habitantes da Grande SP, a companhia já reduziu a pressão da água injetada no sistema de abastecimento para reduzir o consumo e, segundo informa, evitar desperdícios. A medida afeta principalmente os bairros mais altos e as residências sem caixa d’água. 

O Consórcio das Bacias dos Rios Piracicaba Capivari e Jundiaí (PCJ) já havia alertado sobre a possível necessidade de aumento na transposição para o Cantareira na segunda quinzena de setembro. Na ocasião, diz a entidade, o comportamento climático e a queda no nível das represas já preocupavam sua equipe técnica. Além de atender parte da Grande SP, a água do Cantareira irriga rios que abastecem as regiões de Campinas, Jundiaí e Piracicaba.

A ANA autorizou a retirada de 40 milhões de metros cúbicos adicionais da represa Jaguari, no Paraíba do Sul, e a transferência desse montante ao reservatório de Atibainha. Por ser o Paraíba um rio interestadual, que abastece também municípios fluminenses e mineiros, a medida teve a anuência do Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro e do Instituto Mineiro de Gestão de Águas. Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional, esteve na assinatura do comunicado conjunto. Na ocasião, o diretor-presidente substituto da ANA, Oscar Cordeiro Netto, lembrou que a medida visava a evitar riscos maiores ao abastecimento em São Paulo. A vazão média de captação na Jaguari será de 5,13 metros cúbicos por segundo. 

A Sabesp informou que, com as poucas chuvas deste ano, o bombeamento de água do rio Jaguari para o Atibainha dá mais segurança hídrica às regiões metropolitanas da capital e de Campinas. 

Período chuvoso

Ainda segundo a companhia, o período chuvoso ainda está no início, e a projeção aponta níveis satisfatórios dos reservatórios da Grande SP, “com as perspectivas de chuvas do final da primavera e início do verão, quando a situação será reavaliada”. 

No interior do Estado, as chuvas dos últimos dias trouxeram alívio à situação de alguns mananciais. Em Franca, o rodízio iniciado há mais de um mês foi encerrado na segunda-feira. A Sabesp, porém, pede à população economia de água.

O Serviço Municipal de Água e Esgoto (Semae) de São José do Rio Preto reduziu em duas horas o racionamento diário, após ter 92 milímetros de chuva este mês. No ano todo, choveu 545 mm, menos do que os 815 mm de 2020. O racionamento começou em 12 de maio e pode acabar ao fim deste mês.

O Departamento de Água e Esgoto de Bauru (DAE) alterou o rodízio de 24 horas com água e 48 sem água para 24 horas com e 24 sem, após chuvas elevarem o nível da lagoa de captação do Rio Batalha em quase 1 metro. 

Valinhos e Itu continuam com o racionamento. Vinhedo, com rodízio desde o dia 11, manterá a medida de forma preventiva. Porto Feliz continuará, também, com a restrição.


A terrível ameaça dos ladrões de miojo, FSP

 

Do lobby do hotel em Salvador, ouvi gritaria que vinha da rua.

Quem berrava era uma criança miserável. Tão desnutrida que não dava para saber se tinha 7 ou 14 anos. Tão imunda que não dava para saber se era preta, parda ou quase preta. Tão largada no mundo que não dava para saber se era menina ou menino.

Era menina, vim a saber. Ela brandia um pedaço de pau na direção de um homem adulto, quase velho, branco ou quase branco, camisa de botão, pinta de taxista.

Não dava para entender o que a menina dizia. Ela bramia em borbotões de fúria, rápida e desarticuladamente.

Segundo os funcionários do hotel, ela acusava o homem de algum tipo de importunação sexual. Ria, constrangida, a plateia de turistas, motoristas e porteiros. Em poucos minutos, a menina foi convencida a se retirar de cena.

Tudo retornou ao normal no Corredor da Vitória –um dos maiores bolsões de riqueza da capital baiana.

Naquela cena tão confusa, uma coisa era cristalina: o olhar da garota. Sua expressão de raiva e rancor. Nunca vi um olhar tão sério. Não sei se ela falava coisa com coisa, mas falava muito sério.

Ela queria desesperadamente ser levada a sério. Ser tratada como gente, não como uma praga urbana, um rato de bueiro, um cão sem dono.

“Meu sonho é ser gente”, disse a moradora de rua que passou duas semanas presa, acusada de furtar miojo, refrigerante e refresco em pó de um supermercado paulistano –um total de R$ 21,69 em mercadoria.

Até que um juiz concedesse liberdade à mulher, duas instâncias mantiveram a prisão sob o argumento da reincidência. Em sua sentença, o desembargador Farto Salles disse ser “impossível se negar a periculosidade avaliada em face da real e intensa culpabilidade da agente”.

Do juridiquês para o português: ela é uma ameaça às pessoas de bem.

O meritíssimo está corretíssimo. Pessoas como a ladra de miojo e a menina de Salvador são uma ameaça à mentira que encenamos todos os dias. Sua presença ostensiva estraga nossa ilusão de viver numa sociedade digna e justa, de respeito às leis e coleta de lixo na porta do prédio todas as noites.

Os ladrões de miojo reviram nossos sacos de lixo antes da chegada do caminhão, um horror.

Os ladrões de miojo acampam na porta do supermercado e destroem a experiência das compras em ambiente climatizado. Mas duvido que sejam uma ameaça, com seus potenciais furtos, ao balanço das redes varejistas. Se põem um pé para dentro da loja, ganham escolta individual da segurança.

Todos sabemos quem são os cracudos, o mendigos, os bêbados, os fracassados, os indigentes, os indesejáveis.

Eu posso fazer compras de moletom sujo e camiseta furada, ninguém vai mexer comigo. Se roubar um miojo, por farra, vou tomar uma descompostura. Se tivesse vontade e talento, poderia ser milionário com o roubo de recursos públicos.

Os ladrões de miojo nos ameaçam porque exibem o abismo. Desviamos o olhar com vergonha e pavor de cair lá também.

Luís Francisco Carvalho Filho - Militares matam civis, FSP

A condenação dos soldados que fuzilaram o músico Evaldo dos Santos Rosa e o catador Luciano Macedo no Rio de Janeiro, em abril de 2019, recoloca em pauta questão institucional importante.

Muito além da presença perniciosa e temerária de oficiais militares na administração federal, decorrente do desastroso governo de Jair Bolsonaro (sem partido), as Forças Amadas têm sido chamadas constantemente para operações de garantia da lei e da ordem.

A bagunça jurídica está instalada. A Justiça Militar julga soldado que mata ou agride civil e julga civil que desacata ou desobedece militar.

Imagem em primeiro plano mostra homem negro de óculos escuros posando para foto sorrindo
Evaldo Rosa dos Santos, músico morto em ação do Exército no Rio em 2019 - Reprodução/Facebook

Duas ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal tratam do assunto.

A ADI nº 5.901, movida pelo PSOL, aponta a inconstitucionalidade da Lei 13.491/2017, herança do governo Temer, que fixa a competência da Justiça Militar para julgar crimes dolosos contra a vida (de civis) cometidos no contexto de “atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária”.

O parecer da ex-procuradora-geral Raquel Dodge é vigorosamente favorável à tese da inconstitucionalidade e, em setembro de 2019, semanas antes de Augusto Aras assumir a função, pediria prioridade e urgência para o julgamento da ADI. O processo não se moveu.

Já a ADI 5.032, proposta em 2013 pelo procurador-geral da República contra lei complementar de 2010, que ampliou “demasiadamente” a competência da justiça castrense (por “chamar de crime militar aquilo que não o é”), está pronta para ser decidida desde fevereiro de 2019.

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O processo entra e sai do calendário de julgamentos do STF. Três ministros votaram: Marco Aurélio e Alexandre de Moraes, pela improcedência do pedido, e Edson Fachin, pela inconstitucionalidade da ampliação.

Justiça Militar deveria ter alcance restrito e excepcional. Existe para julgar delitos praticados por militares contra bens jurídicos próprios da ordem militar. A segurança pública não está entre eles. Militares e policiais militares devem responder perante a justiça comum quando se excedem em função de policiamento.

Quando o fuzilamento brutal do músico e do catador acontece, o Brasil era ameaçado também pela ideia de excludente de ilicitude do pacote anticrime do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, na época absolutamente sintonizado com Jair Bolsonaro e o seu propósito de criar proteções absurdas para o agente policial que mata.

Soldados da 9a. Brigada de Infantaria Motorizada efetuavam patrulhamento irregular para a prisão de um suposto traficante carioca e, gratuitamente, desferiram 257 tiros de fuzil contra pessoas inocentes.

A Agência Pública revelaria, em 2020, a ilegalidade da operação Muquiço, um resquício criminoso, obscuro e não investigado da intervenção federal no Rio de Janeiro, encerrada em 31 de dezembro de 2018.

A condenação aparentemente rigorosa e rápida dos oito soldados que efetuaram os disparos transmite um sentimento enganoso de eficiência.

Dois dos cinco integrantes do conselho especial de justiça militar votaram pela absolvição dos militares ou por uma condenação branda, por crime culposo. Sem a vigilância da opinião pública, o desfecho do caso poderia ter sido diferente.

Mas a circunstância mais reveladora do papel corporativo e tolerante, normalmente desempenhado pela Justiça Militar, é a ausência de oficiais superiores, responsáveis pelo patrulhamento ilegal, no banco dos réus.