Do lobby do hotel em Salvador, ouvi gritaria que vinha da rua.
Quem berrava era uma criança miserável. Tão desnutrida que não dava para saber se tinha 7 ou 14 anos. Tão imunda que não dava para saber se era preta, parda ou quase preta. Tão largada no mundo que não dava para saber se era menina ou menino.
Era menina, vim a saber. Ela brandia um pedaço de pau na direção de um homem adulto, quase velho, branco ou quase branco, camisa de botão, pinta de taxista.
Não dava para entender o que a menina dizia. Ela bramia em borbotões de fúria, rápida e desarticuladamente.
Segundo os funcionários do hotel, ela acusava o homem de algum tipo de importunação sexual. Ria, constrangida, a plateia de turistas, motoristas e porteiros. Em poucos minutos, a menina foi convencida a se retirar de cena.
Tudo retornou ao normal no Corredor da Vitória –um dos maiores bolsões de riqueza da capital baiana.
Naquela cena tão confusa, uma coisa era cristalina: o olhar da garota. Sua expressão de raiva e rancor. Nunca vi um olhar tão sério. Não sei se ela falava coisa com coisa, mas falava muito sério.
Ela queria desesperadamente ser levada a sério. Ser tratada como gente, não como uma praga urbana, um rato de bueiro, um cão sem dono.
“Meu sonho é ser gente”, disse a moradora de rua que passou duas semanas presa, acusada de furtar miojo, refrigerante e refresco em pó de um supermercado paulistano –um total de R$ 21,69 em mercadoria.
Até que um juiz concedesse liberdade à mulher, duas instâncias mantiveram a prisão sob o argumento da reincidência. Em sua sentença, o desembargador Farto Salles disse ser “impossível se negar a periculosidade avaliada em face da real e intensa culpabilidade da agente”.
Do juridiquês para o português: ela é uma ameaça às pessoas de bem.
O meritíssimo está corretíssimo. Pessoas como a ladra de miojo e a menina de Salvador são uma ameaça à mentira que encenamos todos os dias. Sua presença ostensiva estraga nossa ilusão de viver numa sociedade digna e justa, de respeito às leis e coleta de lixo na porta do prédio todas as noites.
Os ladrões de miojo reviram nossos sacos de lixo antes da chegada do caminhão, um horror.
Os ladrões de miojo acampam na porta do supermercado e destroem a experiência das compras em ambiente climatizado. Mas duvido que sejam uma ameaça, com seus potenciais furtos, ao balanço das redes varejistas. Se põem um pé para dentro da loja, ganham escolta individual da segurança.
Todos sabemos quem são os cracudos, o mendigos, os bêbados, os fracassados, os indigentes, os indesejáveis.
Eu posso fazer compras de moletom sujo e camiseta furada, ninguém vai mexer comigo. Se roubar um miojo, por farra, vou tomar uma descompostura. Se tivesse vontade e talento, poderia ser milionário com o roubo de recursos públicos.
Os ladrões de miojo nos ameaçam porque exibem o abismo. Desviamos o olhar com vergonha e pavor de cair lá também.
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