quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Já votamos 20 vezes e ainda não estamos maduros para o voto facultativo? Fernando Schüler, FSP

 27.jan.2021 às 23h15

Pesquisa Datafolha recente revelou que 56% dos brasileiros são contra o voto obrigatório. O tema é relevante e faz parte de um conjunto de reformas institucionais que o país precisa enfrentar, e é bom que seja discutido.

O ministro Luís Roberto Barroso parece concordar com essa ideia, mas com ressalvas. Ele diz que nessas eleições começamos uma "transição" para o voto facultativo, com um porém: que ainda somos uma "democracia jovem" e tudo deve ficar para "um futuro próximo". Quanto tempo ainda para amadurecermos? Sabe-se lá.

Pelé dizia coisa parecida nos anos 1970: "O povo não está preparado pra votar". Cresci com essa frase na cabeça, que soava como uma verdade intransponível. Por alguma métrica que desconheço, as pessoas, inclusive um sujeito brilhante como o ministro Barroso, continuam acreditando que o povo não sabe votar, mesmo que um dia possa aprender.

Se não sabe, é lógico ter um "nudge". Uma sanção leve, tipo uma palmadinha na bunda para criança se comportar. No nosso caso, é a chatice de fazer o "requerimento de justificativa eleitoral", bloquear documentos, pagar a multinha de R$ 3,51. Só uma palmadinha, até a gente amadurecer.

O curioso é que já votamos 20 vezes desde a volta da democracia. Elegemos oito presidentes, fizemos uma Constituição, dois plebiscitos. Com um sistema de votação exemplar. Mas, por alguma razão, a frase de Pelé continua grudada na nossa cabeça.

Há quem diga que o assunto é irrelevante. Dias atrás alguém me deu este argumento: "Não precisamos nos preocupar com isso", disse o sujeito, "o voto já é quase facultativo. Veja a abstenção nessas eleições".

Talvez ele tenha razão. Num país infestado de burocracia, qual é o problema em ter mais uma multinha? Alguns dizem que o mais importante são os riscos do fim da obrigatoriedade. E se só radicais forem votar? E se o comparecimento for baixo, minando a "qualidade da democracia"?

Argumentos difíceis. A maioria das democracias consolidadas na Europa adotam o voto facultativo, enquanto a obrigatoriedade tende a ser padrão na América Latina. Difícil dizer que nosso modelo melhora a democracia. Há bons exemplos, também na direção oposta, como o da Austrália.

Quanto à legitimidade, daria muito pano pra manga. Na eleição de 1996, nos Estados Unidos, o comparecimento eleitoral foi de 49%. Nesta última foi acima dos 66%. Biden terá mais legitimidade do que Bill Clinton? O não comparecimento indicaria "recusa de consentimento" aos governos? Lembrei-me das lições de Norberto Bobbio, para quem a abstenção pode significar exatamente o contrário: a saúde do sistema ou uma "benévola indiferença" em relação aos candidatos.

Um bom argumento que escutei dizia que "a obrigatoriedade protege a todos". Evitaria o coronelismo e o cabresto em um país que ainda se parece, em muitas regiões, com a República Velha. Não me perguntem como medir isso, ainda que o argumento tenha certo apelo.

De minha parte o incômodo é outro. É a reiterada ideia de que "não sabemos". A crença difusa de que o cidadão comum é, de algum modo, um incapaz. Ela vem do fundo de nossa cultura autoritária. E de lugar nenhum, visto que ninguém até hoje inventou um "incapacitômetro" para medir o grau de maturidade dos cidadãos.

Intuo que é a mesma crença que diz que os mais pobres não podem escolher a escola dos filhos, como aplicar o fundo de garantia e tantas outras coisas.

Crença que está na base de nosso Estado paternalista. Nos últimos anos avançamos um pouco. Exemplo foi a decisão, meio que por milagre, de que os brasileiros podem decidir se querem ou não pagar o seu sindicato.

Mas a verdade é que a estrada é longa e o voto facultativo, para além de nos livrar do cartório, afirma um tipo de valor. O valor da autonomia dos cidadãos. A ideia de que as pessoas comuns podem aprender e tomar decisões por conta própria. E que sempre que alguém com o poder de ditar as regras do jogo disser o contrário, devemos desconfiar.

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

Alexandre Schneider Felipe Neto tem razão?, FSP

 Bem ao seu estilo, o youtuber Felipe Neto movimentou as redes sociais no último final de semana. Postou um meme da apresentadora Palmirinha segurando um cartaz onde se lia “Crie uma treta literária e saia”. Felipe seguiu à risca o recado e sapecou: “Forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura. Álvares de Azevedo e Machado de Assis NÃO SÃO PARA ADOLESCENTES! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco”. A questão trazida pelo influenciador digital não é nova, mas continua mal resolvida no âmbito educacional, e a reação nas redes sociais, que passou o último fim de semana discutindo a questão, demonstra isso.

Afinal, quando ler os clássicos? Existe idade para isso?

Em seu “Como ler os clássicos” Italo Calvino nos dá uma pista ao afirmar que “toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira”. O livro continua o mesmo, nós mudamos (ou deveríamos mudar) com o tempo, assim como a história. Portanto, a questão correta deveria ser “como ler os clássicos?” e não porque lê-los. E a escola, como provoca Felipe, tem tudo a ver com isso.

Recentemente entrevistei uma estudante recém-saída do ensino médio e conversamos um pouco sobre seus hábitos de leitura no tempo em que frequentou o ensino básico. Segundo ela, durante o período no ensino fundamental os livros lhes eram oferecidos e havia discussões em sala sobre suas narrativas. Já no ensino médio, quando “os livros eram mais complexos” as atividades se resumiam a ler os livros –ou fragmentos dos mesmos– e responder a um questionário. Felipe atirou no que viu e acertou no que não viu….

Capa do livro 'O Alienista', de Machado de Assis, publicado pela editora Cobogó
Capa do livro 'O Alienista', de Machado de Assis, publicado pela editora Cobogó - Reprodução

A escola afasta o gosto pela leitura e pelos clássicos quando os apresenta de forma descontextualizada, não faz pontes com a realidade dos alunos e a produção cultural atual. É possível ler "Harry Potter", de J.K. Rowling e "David Copperfield" e "Oliver Twist", de Charles Dickens, demonstrando a influência na composição dos personagens da série do jovem mago pelos clássicos de Dickens.

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O professor pode apresentar filmes holywoodianos ou novelas populares e discuti-los a partir da leitura de "Romeu e Julieta", ou "Hamlet", de Shakespeare. "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, pode ser lido junto a "Quarto de Despejo", de Carolina Maria de Jesus, ou "Cidade de Deus," de Paulo Lins, e provocar uma discussão sobre a realidade das classes populares brasileiras em dois séculos distintos. Uma sessão do filme "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, também poderia ser utilizada.

Machado de Assis, negro, filho de um pintor de paredes e uma lavadeira, nascido no morro do Livramento, no Rio de Janeiro, tem em sua própria história um fio para a discussão do racismo e de nossa sociedade escravocrata em sala de aula.

A escola pode preparar os estudantes para a leitura do “Bruxo do Cosme Velho” com a leitura, ainda no ensino fundamental, de dois livros de autores brasileiros: "O Mistério da Casa Verde", de Moacyr Scliar, e "O Alienista Caçador de Mutantes", de Natalie Klein, que revisitam o conto "O Alienista", de Machado de Assis com histórias voltadas ao público infanto-juvenil. No ensino médio a escola trabalharia com "O Alienista", retomando as leituras realizadas nos anos anteriores.

O vigor dos slams, as batalhas de poesia presentes na periferia, já chegou a escolas e tem até um campeonato entre as escolas públicas de São Paulo, prova de que os jovens não só lêem, mas produzem textos literários. A bossa nova, a tropicália o hip-hop, o rap e o funk brasileiros, com sua mistura da música tradicional brasileira com elementos do jazz, do rock e da música negra americana nos mostraram que não há oposição entre clássico e moderno, mas sínteses disruptoras que não deixam de incorporar nossa identidade.

Felipe Neto tem razão. Apenas atirou no que viu –forçados a ler os clássicos sem método e mediação adequada, os estudantes podem sim pegar aversão pelos mesmos e pela leitura– e acertou no que não viu –a escola precisa mudar sua abordagem sobre os clássicos brasileiros, tão necessários à compreensão de nossa história e identidade.

Aos leitores, deixo uma sugestão: para entender o Brasil, especialmente nos dias de hoje, nada melhor do que a leitura de "O Alienista". Em qualquer idade!

Alexandre Schneider

Pesquisador do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo.


THE NEW YORK TIMES Quatro coisas a saber sobre 'efeito GameStop', FSP

 28.jan.2021 às 16h58

NOVA YORK | THE NEW YORK TIMES

internet e as bolsas estão em chamas com a GameStop, loja de videogames cuja ação é de repente a queridinha dos corretores que espremem os grandes atores de Wall Street.

As apostas são enormes: o aumento das negociações elevou o valor da GameStop de US$ 5,35 bilhões para US$ 24,24 bilhões de segunda (25) para quarta-feira (25).

A GameStop –comum em todos os shopping centers dos Estados Unidos– valia cerca de US$ 2 bilhões em dezembro. Hoje vale US$ 24 bilhões, aproximadamente o mesmo que a gigante das carnes Tyson e a refinaria de combustível Valero Energy. Pelo menos no papel.

Loja da GameStop em New York, Estados Unidos - Michael M. Santiago/AFP

A explicação exata tem a ver com uma mistura de investimentos tradicionais, entusiasmo galopante, mecânica do mercado de ações e a crença de que qualquer pessoa com uma conta na corretora digital Robinhood pode criar uma fortuna.

O QUE ESTÁ ACONTECENDO?

Chama-se "short squeeze" ("aperto rápido" em tradução literal) e envolve os investidores apostarem em como uma ação vai evoluir –para cima ou para baixo. Essas apostas são feitas comprando opções de ações, o que vamos explicar grosseiramente aqui.

As opções permitem que o investidor ganhe dinheiro mesmo que a ação em si desvalorize. Os investidores que apostam contra uma ação são chamados de "shorts". No caso da GameStop, os shorts incluem pelo menos dois grandes fundos hedge.

A aposta short (isso mesmo ou tem outro nome melhor?) significa basicamente emprestar ações de um corretor e vendê-las, com o acordo de que você as devolverá mais tarde. Quando o preço cai, você recompra as ações e embolsa a diferença. Mas apostar contra uma ação é arriscado –se o preço subir, você pode perder muito. Isso é o "aperto".

Os shorts têm de fechar suas posições –isto é, comprar as ações que devem às corretoras e devolvê-las. Essa demanda faz a ação subir, e um short que agir tarde demais pode se arruinar.

Geralmente, esse tipo de impasse envolve investidores sofisticados de Wall Street, por exemplo quando Bill Ackman disputou com dois outros bilionários –Daniel Loeb e Carl Icahn– a fabricante de suplementos dietéticos Herbalife.

POR QUE A AÇÃO DA GAMESTOP COMEÇOU A SUBIR?

Os amadores começaram a puxar o preço para cima.

No último ano, corretores de poltrona invadiram o mercado. Alguns farejaram oportunidades depois que as ações despencaram na última primavera, alguns tentavam matar a vontade de apostar depois que os campeonatos esportivos pararam, e para outros é apenas um jogo –tentar colecionar dólares em vez de pontos. Tudo isso foi facilitado pelas corretoras gratuitas oferecidas por plataformas como Robinhood e E-Trade.

Alguns desses amadores entusiásticos estão comprando ações da GameStop, mas muitos estão fazendo suas próprias opções de apostas, no lado oposto dos shorts.

Essas apostas envolvem contratos que lhes dão a opção de comprar uma ação por um certo preço no futuro. Se o preço subir, o corretor poderá comprar a ação por uma pechincha e vendê-la com lucro. (Na prática, muitos corretores simplesmente vendem o contrato de opções, com lucro ou prejuízo, em vez de realmente comprar as ações, mas esta descrição é suficiente para nosso objetivo.)

Os corretores que vendem os contratos de opções têm de fornecer as ações se o corretor quiser exercer a opção. Para reduzir seu risco, eles compram parte das ações de que precisariam. Normalmente, esse pequeno volume de demanda não afeta muito o preço.

Mas se muitos corretores apostarem alto a demanda pode forçar um aumento da ação. Se ela subir o suficiente, os corretores que estariam a descoberto têm de comprar mais ações, para não ficarem empacados, tendo de comprar muitas ações caras de repente.

Isso aumenta a demanda, o que aumenta o preço da ação. O que significa que os corretores têm de comprar mais ações, o que significa... você entendeu.

ESTÁ BEM, MAS POR QUE A GAMESTOP?

Você pode colocar parte da culpa no fórum Apostas de Wall Street da Reddit, um dos lugares mais bizarros da internet. Wall Street Bets, ou WSB, é onde os corretores de poltrona se reúnem para compartilhar memes, reclamar das perdas e compartilhar mais memes. Mas eles também trocam dicas e análises que podem ocupar páginas.

As ações da GameStop começaram a subir em dezembro, depois que o fundador do site de suprimentos para pets Chewy.com comprou uma participação na empresa e ocupou um lugar no conselho diretor. Lentamente, a companhia ganhou a atenção da WSB e de corretores que frequentam a rede social voltada para games Discord.

Os motivos dos corretores variam bastante. Alguns explicam que as ações da GameStop são um bom valor. Outros estão só surfando na onda. E outros querem espremer a Melvin Capital, fundo hedge que estava espremendo a GameStop. São eles que citam o personagem de Heath Ledger Coringa, de "O Cavaleiro das Trevas": "Não se trata de dinheiro, mas de mandar um recado".

Mas as manobras agressivas contra os shorts não se limitam necessariamente a amadores. Os grandes atores de Wall Street conhecem uma boa oportunidade quando a veem.

COMO TERMINA O APERTO DA GAMESTOP?

Ninguém sabe.

Um porta-voz da Melvin Capital –que precisou de uma injeção de US$ 2,75 bilhões em dinheiro na segunda-feira por causa do aperto– disse que a firma tinha se fechado da posição de aperto. Andrew Left, da Citron Research, outra short, disse que havia coberto a maior parte de sua posição vendida "com prejuízo, 100%".

Há um detalhe: a GameStop, como empresa, não está muito diferente de um mês atrás –por qualquer medida convencional, o preço de sua ação inchou terrivelmente-- e se tornou extremamente arriscada para quem possui suas ações.

Mas isso não se refere mais somente à GameStop. Amadores entusiasmados também estão apostando na alta de outras ações em dificuldades, como da rede de cinemas AMC e da fabricante de smartphones BlackBerry.

Essa estranha pequena bolha não afeta só os apostadores, porém. Se os grandes investidores no lado perdedor desses negócios tiverem de captar dinheiro para cobrir seus prejuízos, pode significar o descarte de ações suficientes para prejudicar os preços de ações que seriam sólidas.

Se a liquidação for grande o suficiente, poderá ter um efeito cascata que leve a prejuízos maiores para investidores que nunca compraram ou venderam uma ação da GameStop.