quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Kassab não tem nada a ver com Doria e pode se alinhar com Ciro para 2022, diz Márcio França à Folha, FSP

 Joelmir Tavares

SÃO PAULO

Terceiro colocado na corrida à Prefeitura de São Paulo, Márcio França (PSB) indicou em entrevista à Folha que tenta atrair o presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, para sua órbita e a do ex-ministro Ciro Gomes (PDT), que foi aliado do ex-governador na eleição paulistana e é presidenciável para 2022.

"Se o Kassab faz um movimento como esse, rumo ao Ciro, seria importante", disse ele, incluindo na costura de um eventual projeto nacional o prefeito reeleito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD).

França, que é tido como negociador habilidoso e se descreve como alguém pragmático, revelou ainda ter expectativa de ganhar como colega no PSB o governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B).

Para o ex-governador, Bruno Covas (PSDB) foi para o segundo turno contra Guilherme Boulos (PSOL) e venceu porque preencheu um espaço de "meio" (ou "miolo") que ele almejava ocupar.

O ex-governador Márcio França (PSB), que ficou em terceiro lugar na eleição para prefeito de São Paulo em 2020 - Bruno Santos/Folhapress

Que balanço faz do seu resultado? Claro que, quando a gente entra, quer ganhar. Consolidei um espaço importante na capital, que eu não tinha. Consegui encontrar uma espécie de um "segundo meio", porque o meio estava ocupado pelo Bruno, que era o favorito para ir ao segundo turno, e o meu eleitor é desse lugar, não é de uma das pontas.

Por que o sr. não foi para o segundo turno? Os tucanos primeiro tentaram cravar o [Celso] Russomanno [como adversário] e, quando viram que ele não se segurou, foram em busca de uma segunda alternativa, o Boulos, que foi uma presa fácil. Sabiam que, se eu fosse para o segundo turno, seria um desastre para eles, entraria no eleitorado de todos os lados.

Aponta algum erro da sua campanha? Olha, na análise eleitoral pós-eleições, tudo fica meio óbvio. Evidentemente, a doença [câncer] em uma pessoa jovem, a valentia do Bruno foram fatores importantes e o consolidaram no miolo. Aí o meu espaço de miolo ficou ocupado. Se eu ficasse jogando só com as posições de esquerda, eu não conseguiria. [Ficaria] como da outra vez, aquela história de Márcio Cuba.

Seu encontro com Jair Bolsonaro em agosto teve algum impacto? A política exige uma certa maleabilidade, até porque no segundo turno você precisa fazer movimentos. Na outra eleição, eu tive uma policial na vice. Ela era bolsonarista.

O sr. saiu de 3,3 milhões de votos no segundo turno na capital em 2018 para 728 mil neste ano. Essa comparação conduz a um equívoco, porque no segundo turno as pessoas não votaram em mim. Votaram contra o Doria. O voto não era meu.

Tinha um fato nesta eleição que era real, é que eu não tinha uma vida consolidada em São Paulo.

O sr. apostou novamente na retórica anti-Doria. Enquanto houver um Doria, haverá um anti-Doria em São Paulo. E hoje eu estou consolidado [nesse papel], não é alguém do PT nem do Bolsonaro.

Além da sorte, o Doria tem outras qualidades. É determinado, obstinado, acorda cedo. Ele não tem é sensibilidade social. E não entende nada de administração pública. Mas vai sendo empurrado pelo PSDB, que é uma máquina. Ele sai consolidado desse processo, pronto para 2022. Ele, o Ciro e o Bolsonaro.

Concorda com a leitura de que Boulos saiu como líder de peso na esquerda? Foi uma passagem positiva, mas serviu muito mais individualmente, porque ninguém pode supor que o PSOL vá ter uma candidatura a presidente da República competitiva. Quando chegar ao interior, em Araraquara, em Fernandópolis...

E se ele consolidar a frente de esquerda que quer construir? O problema de frente... É igual à história da Marta [Suplicy]. Todo o mundo fala em frente, desde que seja o líder da frente.

Ao declarar neutralidade no segundo turno, o sr. disse que não aceitava empurrões. De quem? Do PDT? Não, do PDT não. Havia uma coisa assim: tem que ser com o Boulos. Mas por que eu tenho que apoiar o Boulos se ele há dois anos não declarou voto em mim?

Eu não tinha razão para fazer esse movimento. O que me encanta são desafios. Você sai de uma eleição e começa outra. E como você vai depois chegar e falar que apoia o Boulos lá em Piracicaba? Se eu já era [considerado] de esquerda lá, você calcula o Boulos.

Tenho um histórico de convivência partidária, mas eu não tenho esse perfil de mais radical. O eleitor mais jovem, universitário, me acha muito pragmático. Quer uma opção mais romântica. Eu não disputo para ir para segundo turno, disputo para ganhar. Eu não era candidato a ser líder de esquerda.

Ficou algum atrito com seu partido, cuja direção nacional orientou apoio a Boulos? Não. Temos uma relação muito antiga. Eles me respeitam bastante, sabem que os meus movimentos têm a ver com sobrevivência eleitoral.

O momento estava para candidatos mais ao centro e mais experientes. Eu estava certo nessa análise. E, no meu caso, se não sou candidato, eu desapareço, porque não tenho um partido grande.

Seu futuro é ser candidato a governador em 2022? Com essa posição, o meu nome está colocado, é sempre um player aqui no estado. Não tem muita alternativa. O partido não tem outra figura que esteja à disposição.

É claro que a ideia é disputar. O meu nome, se fizerem pesquisa hoje, vai estar lá. Mas eu posso sair a governador, a vice-governador, a senador, não sair a nada. A eleição de governador é determinada pelas circunstâncias das eleições nacionais.

Como estão as costuras? Suponha que saia uma chapa tipo Kalil presidente da República, com Cid Gomes [senador do PDT e irmão de Ciro] vice, por exemplo. Aí acerta Pernambuco, acerta Ceará, entra São Paulo, e pronto, já está feito um enquadramento. É um eixo [possível].

O Kassab joga um papel importante aí. E há um papel importante agora que vai ser jogado pelo Flávio Dino, que eu sinto que está de mudança.

Para o PSB? Acho que sim. Sou muito amigo do Flávio. Ele é brilhante. Foi o melhor deputado que eu conheci em Brasília. O movimento dele vai ser o mais importante dos próximos dias. O PC do B está com um problema [com a cláusula de barreira]. Ou eles migram para algum canto ou vão ser diluídos.

Quem saiu vitorioso desta eleição, na sua opinião? Foram três grandes vitoriosos. O Kassab botou uma candidatura em São Paulo sem chamar muita atenção [Andrea Matarazzo] e sem brigar com ninguém. E foi muito bem no estado e no Brasil. Ele é um player nacional relevante, está descolado do centrão.

O Doria é um vitorioso pela sorte. E o Ciro tem uma persistência cívica. No Nordeste, a junção PSB-PDT teve bons resultados. Além disso, percebo o Kalil como uma estrela em ascensão, é ligado ao Kassab e amigo do Ciro. Vejo nisso aí uma certa chance, um certo alinhamento.

Se o Kassab faz um movimento como esse, rumo ao Ciro, seria importante. Sinto que o Kassab não tem simpatia pela engenharia PSDB-DEM. Conheço o jeitão dele. Ele não tem nada a ver com o Doria também. Ele é rival do DEM.

O sr. tem falado com PDT, Kassab, PC do B, Solidariedade, Avante. Conversou também com Boulos e Geraldo Alckmin. Sobre o quê? O Boulos eu cumprimentei. Foi um desempenho bacana para um rapaz novo.

O Alckmin me ligou para me cumprimentar. Disse: 'Olha, eu fui terceiro colocado [na disputa para prefeito em 2008] e saí disso para governador'.

Quem é mais preparado para ser presidente: Doria ou Bolsonaro? Não sei o que vai acontecer... Do ponto de vista ideológico, o Bolsonaro é mais radical, né?

O Doria é um adversário perigosíssimo também para o próprio Bolsonaro. É mais cara de pau, né? O Doria vai se abraçar no Lula, não tenha dúvida, se precisar ele vai se agarrar no [Nicolás] Maduro. Ele não tem nenhum problema com isso, é bem pragmático.

E qual dos dois é mais preparado? Difícil, né? Acho ambos despreparados. O Bolsonaro é mais sincero, mais autêntico. O Doria é um moço mais elaborado, fala duas ou três línguas, estudou.

A gente vai fazer todo o possível para que tenhamos mais opções. O Ciro é um player hoje relevante. A persistência cívica dele é admirável. É um cara preparado.

Luciano Huck, é viável? É um nome simpático para todo o mundo. Agora, e qual é a disposição real? Porque, na hora em que você tem que assinar a ficha e se filiar, é difícil, né? Você é uma certa unanimidade, no dia seguinte passa a não ser.

Em dezembro de 2018, em entrevista à Folha, o sr. disse que, se o modelo de extremos daquela eleição falhasse, a política seria convocada. Já chegamos a este momento? Sim. Esse movimento estreou na eleição de 2020, mas vai desaguar com muito mais força na próxima, porque a crise social não vai diminuir, vai aumentar.

Em São Vicente, seu berço político, como fica a sua situação após a derrota de seu cunhado Pedro Gouvêa (MDB)? O Kayo [Amado, eleito pelo Podemos] foi quem mais lutou para ser prefeito. Mas é uma cidade muito difícil, um teste de fogo. O orçamento é baixo e a população depende muito do serviço público.
É claro que o ideal é ganhar, né? O Pedro fez um trabalho tecnicamente correto. Pegou a cidade destruída. Se eu ganho a eleição de governador, teria uma série de facilidades. Com o Doria, foi o contrário: cortou os convênios, dificultou. Nada que não fosse previsível.​

RAIO-X

Márcio Luiz França Gomes, 57
​Formado em direito, foi oficial de Justiça antes de entrar na política como vereador e duas vezes prefeito de São Vicente (1997-2004). Sempre filiado ao PSB, teve dois mandatos como deputado federal (2007-2015). Em 2014 se elegeu vice-governador na chapa de Geraldo Alckmin (PSDB). Assumiu o governo em abril de 2018, com a renúncia de Alckmin para concorrer à Presidência. Disputou a reeleição contra João Doria (PSDB) e perdeu no segundo turno (por 52% a 48%). Neste ano, ficou em terceiro lugar na disputa pela Prefeitura de São Paulo, com 728.441 votos (13,64%), tendo Antonio Neto (PDT) na vice

'Tinha que matar é mais', Conrado Hübner Mendes, FSP

 A brutalidade brasileira é um agregado de ações e omissões estatais e individuais com a insígnia do racismo. Debaixo da prática, há uma filosofia que a atiça. A filosofia tem um capítulo da morte, uma doutrina do matar e deixar morrer. Pela primeira vez na história, a selvageria verbal se transformou em dialeto presidencial. A correlação entre o verbo recitado lá de cima e a violência letal lá embaixo (nas periferias) não é mais dúvida nas ciências sociais.

A filosofia "polêmica" esteve por décadas na ponta da língua de seu maior embaixador contemporâneo. Alçada à Presidência, a doutrina era antes gritada no Jô Onze e Meia, CQC, SuperPop, nos Rafinhas e Gentilis da TV. Sob gargalhadas. A graça era essa:

"Polícia tinha que matar é mais. Policial que não mata não é policial. Esses policiais têm que ser condecorados. Se alguém disser que quero dar carta branca para policial matar, eu respondo: quero sim. Os caras vão morrer na rua igual barata.

É muito comum qualquer policial, em operação, matar o vagabundo, matar o traficante. E a imprensa, em grande parte, vai em defesa do marginal e condenam o policial. Liberdades e direitos constitucionais são esterco da vagabundagem. Direitos das crianças têm que ser rasgados e jogados na latrina."

O embaixador fez seus discípulos por todo país e foi multiplicando o bestiário político brasileiro. "A polícia vai mirar na cabecinha e... fogo", "a polícia vai atirar para matar", "bandido não vai para delegacia, vai para o cemitério". Este último cumpriu sua promessa em Paraisópolis um ano atrás.

O policiamento público e privado de corpos negros com uso ilimitado da força é política de segurança que a Constituição nunca conseguiu incomodar.

O embaixador responde: "Não adianta dividir o sofrimento do povo brasileiro em grupos. Problemas como o da violência são vivenciados por todos. Não nos deixemos ser manipulados por grupos políticos. Sou daltônico: todos têm a mesma cor".

Os fatos insistem em dividir o sofrimento brasileiro em grupos. O Anuário de Segurança Pública de 2020, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, faz a radiografia mais recente: negros são 75% de vítimas de violência letal no país; 79% das vítimas de intervenção policial; 65% dos policiais assassinados; 67% da população carcerária.

As falhas institucionais do concerto entre polícias, Ministério Público, Judiciário e sistema penitenciário, sob a leniência governamental, continuam escancaradas. Blindado de controle, esse edifício multiplica tanto a insegurança quanto a sensação de insegurança.

O edifício é multifuncional. Numa ponta mata crianças negras. Na outra ajuda a logística do crime organizado. No meio, obstrui as investigações pela letalidade policial e permanece indiferente à violência contra policiais, à precarização da carreira, à milicianização. Responsabilidades do alto comando evaporam nesse labirinto. A polícia que mais mata e mais morre no mundo continua refém da política que lucra com isso.

Quem mandou matar mais de 20 crianças negras no Rio de Janeiro no último ano? Quem mandou atirar em Emily, Rebecca, Agatha, Anna Carolina, "menino não identificado", Victor, Arthur, Nicole, "menina não identificada", Raphael, Ketiley, Gabriel, Maria Eduarda, Adrelany, Douglas, Kauã, Rayane, Ítalo, Kaio e Maria Pétala? No jargão da cumplicidade, balas que matam crianças negras são "perdidas".

A filósofa Barbara Applebaum, no livro "Being White, Being Good", tentou entender a "cumplicidade branca": "Mesmo que brancos sejam bem-intencionados, mesmo que se considerem modelos de antirracismo, como podem ser cúmplices involuntários de um sistema injusto? Interessante a alegação de que pessoas possam reproduzir e manter práticas racistas mesmo quando, e especialmente quando, acreditam ser moralmente boas".

Negros morrem mais nas mãos da polícia. Policiais negros morrem mais. Até o coronavírus mata mais negros. 40% mais. Daltônico não é só Bolsonaro.

Mais exemplos? Há três meses descansa na gaveta de Marco Aurélio pedido de providência sanitária do governo federal para proteção de comunidades quilombolas na pandemia (ADPF 742). O ministro do STF dorme. Vidas negras não podem dormir.

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

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