quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

'Tinha que matar é mais', Conrado Hübner Mendes, FSP

 A brutalidade brasileira é um agregado de ações e omissões estatais e individuais com a insígnia do racismo. Debaixo da prática, há uma filosofia que a atiça. A filosofia tem um capítulo da morte, uma doutrina do matar e deixar morrer. Pela primeira vez na história, a selvageria verbal se transformou em dialeto presidencial. A correlação entre o verbo recitado lá de cima e a violência letal lá embaixo (nas periferias) não é mais dúvida nas ciências sociais.

A filosofia "polêmica" esteve por décadas na ponta da língua de seu maior embaixador contemporâneo. Alçada à Presidência, a doutrina era antes gritada no Jô Onze e Meia, CQC, SuperPop, nos Rafinhas e Gentilis da TV. Sob gargalhadas. A graça era essa:

"Polícia tinha que matar é mais. Policial que não mata não é policial. Esses policiais têm que ser condecorados. Se alguém disser que quero dar carta branca para policial matar, eu respondo: quero sim. Os caras vão morrer na rua igual barata.

É muito comum qualquer policial, em operação, matar o vagabundo, matar o traficante. E a imprensa, em grande parte, vai em defesa do marginal e condenam o policial. Liberdades e direitos constitucionais são esterco da vagabundagem. Direitos das crianças têm que ser rasgados e jogados na latrina."

O embaixador fez seus discípulos por todo país e foi multiplicando o bestiário político brasileiro. "A polícia vai mirar na cabecinha e... fogo", "a polícia vai atirar para matar", "bandido não vai para delegacia, vai para o cemitério". Este último cumpriu sua promessa em Paraisópolis um ano atrás.

O policiamento público e privado de corpos negros com uso ilimitado da força é política de segurança que a Constituição nunca conseguiu incomodar.

O embaixador responde: "Não adianta dividir o sofrimento do povo brasileiro em grupos. Problemas como o da violência são vivenciados por todos. Não nos deixemos ser manipulados por grupos políticos. Sou daltônico: todos têm a mesma cor".

Os fatos insistem em dividir o sofrimento brasileiro em grupos. O Anuário de Segurança Pública de 2020, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, faz a radiografia mais recente: negros são 75% de vítimas de violência letal no país; 79% das vítimas de intervenção policial; 65% dos policiais assassinados; 67% da população carcerária.

As falhas institucionais do concerto entre polícias, Ministério Público, Judiciário e sistema penitenciário, sob a leniência governamental, continuam escancaradas. Blindado de controle, esse edifício multiplica tanto a insegurança quanto a sensação de insegurança.

O edifício é multifuncional. Numa ponta mata crianças negras. Na outra ajuda a logística do crime organizado. No meio, obstrui as investigações pela letalidade policial e permanece indiferente à violência contra policiais, à precarização da carreira, à milicianização. Responsabilidades do alto comando evaporam nesse labirinto. A polícia que mais mata e mais morre no mundo continua refém da política que lucra com isso.

Quem mandou matar mais de 20 crianças negras no Rio de Janeiro no último ano? Quem mandou atirar em Emily, Rebecca, Agatha, Anna Carolina, "menino não identificado", Victor, Arthur, Nicole, "menina não identificada", Raphael, Ketiley, Gabriel, Maria Eduarda, Adrelany, Douglas, Kauã, Rayane, Ítalo, Kaio e Maria Pétala? No jargão da cumplicidade, balas que matam crianças negras são "perdidas".

A filósofa Barbara Applebaum, no livro "Being White, Being Good", tentou entender a "cumplicidade branca": "Mesmo que brancos sejam bem-intencionados, mesmo que se considerem modelos de antirracismo, como podem ser cúmplices involuntários de um sistema injusto? Interessante a alegação de que pessoas possam reproduzir e manter práticas racistas mesmo quando, e especialmente quando, acreditam ser moralmente boas".

Negros morrem mais nas mãos da polícia. Policiais negros morrem mais. Até o coronavírus mata mais negros. 40% mais. Daltônico não é só Bolsonaro.

Mais exemplos? Há três meses descansa na gaveta de Marco Aurélio pedido de providência sanitária do governo federal para proteção de comunidades quilombolas na pandemia (ADPF 742). O ministro do STF dorme. Vidas negras não podem dormir.

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

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