domingo, 15 de novembro de 2020

Reocupar o centro, Vera Magalhães, O Estado de S.Paulo


15 de novembro de 2020 | 03h00

Foi só na semana passada que as pessoas parecem ter acordado para o fato de que hoje tem eleição. Nos últimos dias, três debates tiraram a campanha de São Paulo da clandestinidade imposta pela pandemia e pela omissão de quem a usou como desculpa para se esquivar do seu dever de promover a discussão como combustível da democracia.

O que esses debates e as pesquisas mostraram é que, mesmo driblando as restrições do ano do vírus e privado de informações, o eleitor parece ter chegado à conclusão de que é preciso votar com a cabeça, e não com o fígado ou com o coração. As disputas municipais vão resgatando a política, feita de bode expiatório em 2018, e escanteando a nova política estridente e feita de lacração nas redes sociais.

Urna eletrônica
Urna eletrônica sendo prepararada para as eleições municipais de 2020. Foto: Antonio Augusto/Ascom/TSE

Com o pesadelo que é aguentar Jair Bolsonaro e sua Presidência buliçosa todos os dias há quase dois anos, depois de dois governadores eleitos na sua aba defenestrados, seu partido implodido e seus náufragos boiando dispersos por legendas amorfas, parcela significativa do eleitorado que votou nele (porque votaria até no demônio para não votar no PT) parece ter acordado do transe psicótico.

No outro lado, também sumiu da praça o eleitor negacionista dos descalabros do PT, aquele que fez ouvidos moucos para uma série de revelações baseadas em fatos e provas que mostravam que houve um assalto sistemático ao Orçamento público e ao patrimônio de estatais como forma de perpetuar um projeto de poder.

Isso era razão para se eleger um deputado ligado a milícias, com a família inteira empregada na política e se locupletando dela na forma de desvio de recursos de gabinetes para engordar patrimônio, defensor de tortura, assassinato de Estado, apologista do estupro e da homofobia? Certamente não. Portanto podem guardar o blablablá da falta de simetria porque não é disso que eu falo.

Justamente porque os ventos da política sopram rápido, a rápida corrosão da imagem fake do justiceiro minou as chances de simulacros de Bolsonaro de Norte a Sul do País. O presidente, ainda enebriado por aquela popularidade transitória do auxílio emergencial no meio do ano, achou que seria bom cabo eleitoral e se jogou no palanque.

Não satisfeito em conspurcar todas as instituições em 23 meses, enfiou mais o pé na jaca ao fazer lives diárias para promover seus candidatos. O resultado? Esses e os que levaram o capitão à TV viram suas chances minguarem. Enquanto isso, o centro, humilhado nas urnas em 2018, parece ter voltado a ser um lugar de conforto para um cidadão traumatizado por morte, doença, desemprego, inflação e falta de perspectiva.

Políticos experimentados, sem histrionismo, e uma nova esquerda não-petista avançam em capitais e cidades importantes. 

A lição para partidos e lideranças de centro será clara: é pela via da política que o Brasil construirá uma saída para seu impasse, como fizeram os Estados Unidos.

Não se trata de correr para achar um dublê de Joe Biden, ou perder tempo nas redes sociais com a discussão ridícula de se vai ter frente ampla ou não, e quem pode entrar nela. Mas de reconhecer a emergência de se construir pontes para o dissenso democrático, que reconheça adversários e suas pautas como legítimos e representativos de parcelas da sociedade.

É só assim que o legado de destruição do tecido social, institucional e civilizatório de Bolsonaro poderá ser superado em 2022. Ele não é carta fora do baralho, e tem dois anos para tentar construir sua sobrevivência, a depender da economia. Além disso, eleição municipal nem sempre é prévia de nacional.

Com todas as ressalvas, é alentador que tenha sido o eleitor, quietinho numa campanha quase fantasma, a apontar o caminho para superar essa distopia. A bola agora está com os políticos.

*EDITORA DO BR POLÍTICO E APRESENTADORA DO PROGRAMA RODA VIVA, DA TV CULTURA


Análise: O PCC nas eleições e a nova sintonia dos gravatas, FSP

 Marcelo Godoy*, O Estado de S.Paulo

15 de novembro de 2020 | 05h00

A ideia nasceu em 2001. A facção dizia então ser capaz de reunir de 300 mil a 500 mil votos para levar ao Congresso o seu representante. Os bandidos do Primeiro Comando da Capital (PCC) se referiam à organização como “o partido”, demonstrando desde o começo as suas intenções. Um advogado então despontava como o candidato do "partido do crime" para "defender o direito ao voto dos presos e lutar contra as injustiças do sistema prisional brasileiro". Escutas da Polícia Civil em 2002, às vésperas das eleições, detectaram pela primeira a vez a facção indicando para a sua clientela o voto em candidatos, quase sempre para se vingar de quem contrariara seus interesses.

Jovem é executado por não se apresentar a
Criada no interior de São Paulo, a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) se expandiu e está presente em todo o Brasil e em alguns países da América do Sul Foto: Epitácio Pessoa/Estadão

Nas eleições seguintes, o PCC continuou usando advogados como candidatos. Todos eles eram, segundo a polícia, pombos-correio da facção e integrantes da chamada Sintonia dos Gravatas, o chamado departamento jurídico da organização criminosa investigado pela Operação Ethos, do Ministério Público, que valeu para Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, mais uma condenação a 30 anos de cadeia por organização criminosa. O esquema da Sintonia dos Gravatas não mais comportava as relações do PCC com o mundo político. A mudança foi consequência da decisão da cúpula da facção de investir no tráfico internacional de drogas.

Foi em 2008 que Wagner Roberto Raposo Olzon, o Fusca, foi enviado à Bolívia e ao Paraguai para acertar os primeiros detalhes do que se tornaria a Sintonia do Tomate, o setor do tráfico internacional de drogas da facção. A aliança com máfias e cartéis internacionais faria o PCC e seus traficantes mudarem de patamar - a Operação Sharks chegaria à conclusão de que o PCC se transformara em uma organização bilionária. O dinheiro passava a ser lavado por doleiros por meio do dólar-cabo, a mesma estrada por onde passa o dinheiro da corrupção. Os integrantes da facção começaram a se apresentar como empresários e mudaram de universo para lavar o dinheiro do tráfico. Surgiu aí um novo mundo, o dos contratos com o poder público, apropriados pelos bandidos que financiam campanhas e ameaçam os políticos concorrentes. À gravata dos tribunais, a facção acrescentou a da política. O PCC virou um partido, cuja ideologia é a do lucro.

* É REPÓRTER ESPECIAL DO ESTADÃO


Fernanda Torres - Seria lindo se livrar da jaula em 2022, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Agora que os Estados Unidos se livraram do macaco alfa de bola azul, nós, maricas, sobramos na jaula com os betas à beira de um ataque de nervos.

Nessa semana, Jair quebrou o silêncio e tachou o presidente eleito, Joe Biden, de candidato. Não satisfeito, ameaçou o Tio Sam de retaliação com pólvora, acusou brasileiros de fraquejarem na pandemia e ainda celebrou a morte de um voluntário nas pesquisas da Coronavac.

Alguém precisa pingar Rivotril no cafezinho do Alvorada.

Ilustração pixelizada de cena em que Jair Bolsonaro está falando com um intérprete de libras ao lado dele
Publicada neste domingo, 15 de novembro de 2020 - Marta Mello/Folhapress

Bolsonaristas já devem estar disparando a notícia de que a vacina do Doria leva ao suicídio e carregam a espingarda de chumbinho, para defender a Amazônia dos ianques.

Não é extrema direita, é loucura, cegueira, ignorância, homofobia, misoginia e racismo. É masculinidade ariana tóxico-radioativa. E não só aqui.

Se dependesse dos eleitores XY, o amigo imaginário de Jair continuaria sentado no trono, protegido das acusações de assédio e da falência de seu império de “towers” fálicas.

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Os homens de pescoço vermelho parecem compartilhar com Messias a adoração pelo monstro alaranjado, pelas grosserias que irrompem de seu bico melado e pelo topete implantado na cabeça rombuda, onde ruminam ideias herdadas dos que penduravam os estranhos frutos de Billie Holiday em árvores.

O medo datado do comunismo justifica o apoio ao inapoiável. Uma ideologia perigosa, cujo vazio se traduziu na mudez envergonhada do comentarista republicano da CNN, o ex-senador Rick Santorum, diante do desabafo sincero do seu oponente de bancada, o escritor e advogado Van Jones.

“Não era só George Floyd que não podia respirar, muita gente se sentia assim”, disse Jones.

Os recortes por cor e sexo mostram que Trump foi derrotado por afro-americanos e mulheres, e não sem resistência. No conservador Texas, o governador republicano Greg Abbott dificultou a votação por correio, majoritariamente democrata, diminuindo o número de caixas postais por condado.

Em Harris, onde está localizada Houston, Abbott disponibilizou apenas uma caixa postal para uma população de 4,7 milhões de habitantes. Foi preciso enfrentar filas de nove horas para votar, com pelotões trumpistas coibindo eleitores.

O aparato legal do Partido Republicano promete fundamentar o delírio de mau perdedor de Trump. Mas apesar dos estupefacientes 72 milhões de seguidores e das milícias armadas do Nero vermelho, foi a alegria que botou o bloco na rua, depois da vitória democrata.

No discurso de comemoração, Joe Biden se valeu do senso comum, enaltecendo a ciência, a educação e o uso da máscara. Impressiona, nos dias de hoje, a necessidade de se reiterar o óbvio.

Pessimista confessa, receio acreditar que essa eleição sinalize o retorno da moderação na política, mas é preciso reconhecer que até a direitíssima Fox News tirou a porta-voz da Casa Branca do ar, pela insistência em apontar fraudes sem provas na apuração.

Ressalto também o esforço do republicano Arnold Schwarzenegger, que governou a Califórnia de 2003 a 2011 e tenta mover a roda emperrada da polarização com a obstinação de um Conan.

O Exterminador do Futuro disponibilizou US$ 1 milhão para reabrir postos de votação fechados pela pandemia e por governadores interessados em dificultar o acesso às urnas. E lançou o fórum Race and Equality, aberto a todos os credos, para discutir leis que combatam a desigualdade e as distorções enraizadas desde os tempos coloniais.

Em 1647, a migração de iletrados apavorou os puritanos de Massachusetts. Para garantir que suas crianças lessem as escrituras com correção, as famílias já estabelecidas na região cotizaram os custos de alfabetização dos filhos.

O costume se tornou modelo de investimento em educação dos estados americanos, que empregam parte do imposto sobre propriedade no financiamento do ensino local. Mas, devido à discrepância no valor de arrecadação, as escolas dos bairros ricos acabam recebendo verbas mais robustas do que as dos pobres.

A lógica administrativa aprofundou injustiças no período pós-escravidão, condenando descendentes dos escravizados aos guetos e à má formação. Há método na segregação racial americana. No Brasil, o mesmo se deu, só que por meio do descaso e da ausência de leis.

O ex-Mr. Universe acredita que a indiferença republicana às questões sociais irá afundar o partido e procura agir no campo dos interesses comuns. Por aqui, ainda restam dois anos de atraso na canoa furada do ódio.

Seria lindo se livrar da jaula em 2022.

Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.