domingo, 15 de novembro de 2020

Fernanda Torres - Seria lindo se livrar da jaula em 2022, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Agora que os Estados Unidos se livraram do macaco alfa de bola azul, nós, maricas, sobramos na jaula com os betas à beira de um ataque de nervos.

Nessa semana, Jair quebrou o silêncio e tachou o presidente eleito, Joe Biden, de candidato. Não satisfeito, ameaçou o Tio Sam de retaliação com pólvora, acusou brasileiros de fraquejarem na pandemia e ainda celebrou a morte de um voluntário nas pesquisas da Coronavac.

Alguém precisa pingar Rivotril no cafezinho do Alvorada.

Ilustração pixelizada de cena em que Jair Bolsonaro está falando com um intérprete de libras ao lado dele
Publicada neste domingo, 15 de novembro de 2020 - Marta Mello/Folhapress

Bolsonaristas já devem estar disparando a notícia de que a vacina do Doria leva ao suicídio e carregam a espingarda de chumbinho, para defender a Amazônia dos ianques.

Não é extrema direita, é loucura, cegueira, ignorância, homofobia, misoginia e racismo. É masculinidade ariana tóxico-radioativa. E não só aqui.

Se dependesse dos eleitores XY, o amigo imaginário de Jair continuaria sentado no trono, protegido das acusações de assédio e da falência de seu império de “towers” fálicas.

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Os homens de pescoço vermelho parecem compartilhar com Messias a adoração pelo monstro alaranjado, pelas grosserias que irrompem de seu bico melado e pelo topete implantado na cabeça rombuda, onde ruminam ideias herdadas dos que penduravam os estranhos frutos de Billie Holiday em árvores.

O medo datado do comunismo justifica o apoio ao inapoiável. Uma ideologia perigosa, cujo vazio se traduziu na mudez envergonhada do comentarista republicano da CNN, o ex-senador Rick Santorum, diante do desabafo sincero do seu oponente de bancada, o escritor e advogado Van Jones.

“Não era só George Floyd que não podia respirar, muita gente se sentia assim”, disse Jones.

Os recortes por cor e sexo mostram que Trump foi derrotado por afro-americanos e mulheres, e não sem resistência. No conservador Texas, o governador republicano Greg Abbott dificultou a votação por correio, majoritariamente democrata, diminuindo o número de caixas postais por condado.

Em Harris, onde está localizada Houston, Abbott disponibilizou apenas uma caixa postal para uma população de 4,7 milhões de habitantes. Foi preciso enfrentar filas de nove horas para votar, com pelotões trumpistas coibindo eleitores.

O aparato legal do Partido Republicano promete fundamentar o delírio de mau perdedor de Trump. Mas apesar dos estupefacientes 72 milhões de seguidores e das milícias armadas do Nero vermelho, foi a alegria que botou o bloco na rua, depois da vitória democrata.

No discurso de comemoração, Joe Biden se valeu do senso comum, enaltecendo a ciência, a educação e o uso da máscara. Impressiona, nos dias de hoje, a necessidade de se reiterar o óbvio.

Pessimista confessa, receio acreditar que essa eleição sinalize o retorno da moderação na política, mas é preciso reconhecer que até a direitíssima Fox News tirou a porta-voz da Casa Branca do ar, pela insistência em apontar fraudes sem provas na apuração.

Ressalto também o esforço do republicano Arnold Schwarzenegger, que governou a Califórnia de 2003 a 2011 e tenta mover a roda emperrada da polarização com a obstinação de um Conan.

O Exterminador do Futuro disponibilizou US$ 1 milhão para reabrir postos de votação fechados pela pandemia e por governadores interessados em dificultar o acesso às urnas. E lançou o fórum Race and Equality, aberto a todos os credos, para discutir leis que combatam a desigualdade e as distorções enraizadas desde os tempos coloniais.

Em 1647, a migração de iletrados apavorou os puritanos de Massachusetts. Para garantir que suas crianças lessem as escrituras com correção, as famílias já estabelecidas na região cotizaram os custos de alfabetização dos filhos.

O costume se tornou modelo de investimento em educação dos estados americanos, que empregam parte do imposto sobre propriedade no financiamento do ensino local. Mas, devido à discrepância no valor de arrecadação, as escolas dos bairros ricos acabam recebendo verbas mais robustas do que as dos pobres.

A lógica administrativa aprofundou injustiças no período pós-escravidão, condenando descendentes dos escravizados aos guetos e à má formação. Há método na segregação racial americana. No Brasil, o mesmo se deu, só que por meio do descaso e da ausência de leis.

O ex-Mr. Universe acredita que a indiferença republicana às questões sociais irá afundar o partido e procura agir no campo dos interesses comuns. Por aqui, ainda restam dois anos de atraso na canoa furada do ódio.

Seria lindo se livrar da jaula em 2022.

Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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