quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Com Covid, sensação é que o tempo parou de passar e se transformou em espaço, FSP (definitivo)

 

O tempo começa a esquentar de novo em São Paulo, e espero para estes dias a invasão vesperal daqueles cupinzinhos voadores, de quem não tenho muita raiva. Sabe-se que são um perigo para os móveis, as árvores, as paredes, o que vier pela frente.

Mas são tão frágeis! Morrem tão depressa! Convenci-me de que é preciso usar o inseticida. Verdadeira covardia. Eles perdem as asas sozinhos; não se debatem, não fogem, não reclamam.

Um vaqueiro que conheci se recusava a comer carne de carneiro. “Já viu matarem algum?” Respondi que não. “Ele aceita, não faz nada.”

Poderíamos pensar que, então, tanto melhor —o bicho não está fazendo tanta questão de viver. Mas o raciocínio, é claro, é o oposto. O touro, o atum, o javali, pelo menos estão no jogo; por desigual que seja a luta, o carnívoro teoricamente teve algum mérito na vitória.

Isso não vale, evidentemente, para quem compra carne no supermercado; tento acompanhar o raciocínio de quem vive no campo. O certo seria, em todo caso, virarmos todos vegetarianos e encerrar para sempre essa discussão moral.

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Ou então comer insetos —a tendência cresce, ainda que lentamente. Dada a minha idade, relativamente madura, acredito que não vou ver o tempo em que gafanhotos e formigas venham a constituir parte
da dieta ocidental. Irão devorar-me antes que eu os coma.

Volto então às pobres aleluias, siriris, cupins ou seja lá que nome tenham. Numa cidade em que as estações do ano se confundem, esses insetos merecem elogio pela regularidade.

Ilustração de um inseto com duas asas na palma da mão de uma pessoa. Há várias asas soltas voando ao redor da mão
André Stefanini/Folhapress

Lembro uma noitinha de calor, nos tempos em que a Folha nem ar-condicionado tinha. Era a hora em que as coisas começavam a apertar para quem estava escrevendo um texto. Aí pelas 18h30 ou 19h, as notícias se precipitam, podem contradizer tudo o que se dizia antes, alguma bomba real ou econômica explode do nada, o tempo encurta.

De repente, uma pausa, um silêncio sem motivo; as coisas pararam de acontecer por um minuto. E, pela janela, entraram as aleluias, sem barulho. Pareciam aproveitar a brecha de silêncio. O fato —estávamos entre jornalistas— merecia registro. “O verão está chegando”, disse alguém.

Chegava, e os bichinhos já iam morrendo, deixando sobre as mesas e no chão suas asas transparentes, mas levemente ruivas de calor e pó. No fundo, não sei é preciso matar esses insetos. Desaparecem sozinhos, junto com o dia em que surgiram.

Vai ficando estranha aquela expressão —matar o tempo. Acho que, antigamente, havia um bom número de horas vazias. Esperando que Dona Benta entrasse na sala para contar suas histórias,

Pedrinho olhava bestamente para o relógio, e sem nada o que fazer, ficou —na frase tão feliz de Monteiro Lobato— “arrepiando xizes no veludo da almofada”.

Hoje, qualquer minuto de espera é tomado pelo celular e, entre joguinhos, selfies e WhatsApps para responder, esvai-se a diferença entre o útil e o inútil, o necessário e o supérfluo.

O tempo já não passa, já não corre e já não para. Pelo menos, é isso o que sinto desde que começou a pandemia.

Fico tanto dentro de casa que, na verdade, o próprio tempo parece ter virado espaço. Qual o último filme que vi no cinema antes da pandemia? Não me lembro; também esqueci a minha última refeição num restaurante.

Faço força para voltar à minha viagem de férias em julho de 2019. Faz um século, e foi recentíssima: Joe Biden já estava na corrida presidencial americana.

Não é que “faz tempo” desde aquelas férias. Não ficaram simplesmente “no passado”: ficaram em outra dimensão.

Já agora, na pandemia, os dias, as semanas e os meses se tornam praticamente simultâneos. Entre hoje, ontem e o mês passado não noto nenhuma diferença.

As notícias continuam, os artigos se escrevem, o café se coa, a pasta de dente acaba, o corpo muda, o cabelo cresce: os fatos, enfim, não deixaram de existir.

Tornaram-se, entretanto, iguais, pontuados, estáticos, mal se movendo entre o quarto, a cozinha e o banheiro.

Acumulam-se nesse interminável parêntese que se abriu em fevereiro, março ou abril, já não sei mais.
Olho para trás, para todos esses meses, semanas e dias desfeitos na inatividade e no silêncio.

Amontoaram-se no chão, como os cupinzinhos mortos. Paro por aqui. Tempo de varrer o apartamento.

Marcelo Coelho

Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.

Mês de prevenção do suicídio traz ainda ideias erradas sobre o tema, FSP

 

Criado pela Associação Brasileira de Psiquiatria e o Conselho Federal de Medicina (CFM) e pelo CVV – Centro de Valorização da Vida,  para ressaltar a importância da prevenção ao suicídio, o Setembro Amarelo requer atenção em sua longa duração, alertam especialistas.

Na maior parte do mundo, a data é marcada no 10 de setembro, o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, estabelecido pela Organização Mundial da Saúde em parceria com outras instituições internacionais relacionadas à saúde mental, em 2003, para discutir o tema de forma responsável e acolhedora.

O limite entre informar e aterrorizar, afinal, é nue. E dedicar um mês todo ao tema aumenta o risco de acionar gatilhos, alerta Karen Scavacini, fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio.

Na minha visão, hoje, um mês é muito. Isso só ocorre no Brasil. Nos outros países tem o Dia Mundial, ou no máximo, uma semana, nunca o mês inteiro. Precisamos pensar qual é a mensagem que está sendo passada. É mais importante mostrar ações, como as pessoas podem ajudar, do que apenas focar em números.

Um dos cuidados é não espalhar mitos prejudiciais, como eventuais estatísticas relacionando a pandemia com o aumento do suicídio.

Com a quarentena pelo coronavírus, tornaram-se recorrentes inferências em função da maior vulnerabilidade sugerida por esse isolamento, e aumento de distúrbios mentais, que são um fator de risco, mas ainda sem dados oficiais a respeito. Números falsos podem gerar pânico.

A solução nãé evitar o tema, e sim ter atenção. Scavacin frisa que o Setembro Amarelo tem o papel crucial de abrir um diálogo com a sociedade e colocar a questão como um problema de saúde pública, além de combater mitos como o de que falar sobre suicídio pode incentivá-lo.

Com medo de perguntar sobre ao assunto e assim dar a ideia, muitos pais se fecham. Isso é um mito. Ter um canal de escuta, falar abertamente, é importante.

Ela diz que o mais eficaz seria ter um plano nacional de prevenção do suicídio, em que os profissionais pudessem ser capacitados no assunto e as escolas montassem espaços de educação em prevenção da violência escolar, um dos fatores de suicídio.

Não adianta fazermos campanha se ela não tiver objetivo claro, se a mensagem não for segura para o público alvo e se não puder ser avaliada depois, afirma Scavacini,  acrescentando ser importante criar uma central de ajuda específica para suicídio, já que o CVV – Centro de Valorização da Vida, é aberto para todos os tipos de sofrimento.

Em um período dedicado ao assunto, é necessário também ter cuidados ao criar campanhas ou divulgar informações em redes sociais sem aferir a fonte, a solidez da afirmação, os slogans criados e o bem ou mal que possam causar. Afinal, não se sabe como a pessoa receberá a mensagem.

Segundo o psiquiatra Neury Botega, sinais de alerta nem sempre são claros. “É cil achar os sinais depois que o fato ocorreu, mas, de um modo geral, são os sinais de uma pessoa que não está bem.”

Ele frisa a importância da atenção a mudanças de comportamentos ao longo do tempo, como um jovem sociável que passa a se trancar, mas alerta que há erro na afirmação de que a pessoa que se mata sempre dá sinais.

Além de errado, é uma violência com as pessoas enlutadas. Eu mesmo, como psiquiatra com experiência nessa área, já tive que amargar a perda de um paciente que não deu absolutamente nenhum sinal.

Outra alegação incorreta, diz, é afirmar que um diagnóstico psiquiátrico é possível em 90% dos casos.

Pesquisas mais recentes indicam que, em aproximadamente 50% dos casos, havia um transtorno mental entre os fatores que se combinam para levar uma pessoa a própria morte. Nãé tão somente a existência de um transtorno mental que causa um suicídio mas a combinação de vários fatores.

Teresinha Máximo perdeu uma filha de 19 anos por suicídio em março de 2017. Ela tinha depressão, ansiedade e fobia social. Procurou diversos tratamentos, teve dificuldade para encontrar um psicólogo com quem se identificasse, chegou a ser internada.

Com o marido, Joseval, Teresinha participou de campanhas e eventos do Setembro Amarelo em 2017, 2018 e 2019, mas neste ano se diz reticente: A campanha cresceu muito e hoje virou uma salada. Todo mundo é especialista nesse mês”.

Joseval sente o mês de forma desagradável. No primeiro ano, em 2017, achei fantástico. De dois anos pra cá, passei a ver a comunicação feita de forma terrível. Já no final de agosto, eu comecei a ficar tenso. É doloroso para mim.

O casal fica particularmente magoado quando escuta que 90% dos suicídios poderiam ser evitados.

Quando eu posso, corrijo. Eu pergunto, de onde você tirou essa informação? Virou um slogan: 9 de 10 suicídios poderiam ser evitados. É muito sensacionalismo, reclama.

Já falaram para mim: se a Marina estava em tratamento e 90% é evitável, por que ela se matou? Se a medicina está tão avançada, porque os suicídios continuam acontecendo e aumentando? Onde está o erro? Não há só um fator.

Segundo o psiquiatra Botega, a interpretação errônea de uma famosa revisão de casos de suicídio pela OMS, há 17 anos, faz muitos comunicadores afirmarem que 90% dos suicídios podem ser evitados”. Isso beira o desastroso, pois nenhum estudo científico sério chegou perto desse número, afirma ele.

Nos grupos de apoio para enlutados por suicídio, compartilha-se vídeos polêmicos. Entre eles, o de duas meninas, de 4 e 3 anos, com fitinha amarela nos cabelos, e um texto decorado sobre prevenção do suicídio com conceitos distantes da realidade delas.

As  pessoas encaminharam esse vídeo achando que estão fazendo a parte delas no mês. A mensagem não era ruim, mas a forma me incomodou. Era puro marketing, era apelativo, disse Teresinha.

Em outro vídeo, a diretora de Recursos Humanos de uma multinacional diz que as pessoas com depressão ficam sem coragem de enfrentar a vida.

As pessoas não percebem a mensagem que isso passa. Como um funcionário com depressão vai agora dizer ao RH que ele ta com depressão e pedir uma licença médica se a própria diretora acha que essa pessoa está sem coragem pra enfrentar a vida?, questiona Teresinha. Alguns pais deixam os grupos de apoio neste mês para para se protegerem de afirmações daninhas.

Em um dos eventos de que o casal participou no ano passado, por exemplo, uma líder religiosa, escritora, disse que o lugar que mais morrem pessoas é no leste europeu porque lá “o pessoal é ateu”.

Ela falou que as pessoas se matam porque não são religiosas, ou porque estão solteiras, então todo mundo tem que ter família. E ainda afirmou: é claro que as famílias têm que ter vergonha para falar sobre o assunto.

Teresinha e Joseval não têm. Fundaram uma página na internet com informações confiáveis e relevantes sobre luto por suicídio, Nomoblidis”.

O nome é uma homenagem: em seu perfil do whatsapp, a filha Marina usava a frase em catalãSi us plau, no moblidis, traduzido como por favor, não me esqueça”.

Discrepância de salário para quem faz faculdade é oportunidade para incentivo à educação, FSP

 Érica Fraga

SÃO PAULO

discrepância entre o ganho salarial que um diploma de ensino superior oferece aos profissionais brasileiros em relação ao que ocorre em países com maior nível de renda representa atraso, mas também uma enorme oportunidade.

Existe uma explicação simples para o fato de que cursar uma universidade garanta, em média, uma remuneração 131% maior do que terminar apenas o ensino médio no Brasil, vantagem que é o dobro da verificada, por exemplo, nos Estados Unidos, conforme estudo da OCDE divulgado nesta terça-feira (8).

Sala de aula da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA-USP)
Sala de aula da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA-USP); estudo aponta que o Brasil é o país em que terminar o ensino superior garante a maior vantagem salarial - Gabriel Cabral / Folhapress

No Brasil, 21% da população entre 25 e 34 anos têm formação terciária (incluindo os que têm mestrado e doutorado), segundo o relatório divulgado do órgão. O percentual é menos da metade dos 50% registrados nos Estados Unidos.

A escassez de profissionais com ensino superior no Brasil é, portanto, a causa da grande valorização desses trabalhadores no mercado de trabalho do país.

A dificuldade das empresas em conseguir profissionais mais qualificados faz com que elas os remunerem muito bem em relação aos trabalhadores com menos anos de estudo.

À medida em que o diploma universitário deixa de ser um ativo tão raro em um país, ele vai perdendo seu valor relativo. Mas isso não é ruim. É, na verdade, um sinal de desenvolvimento.

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Quanto maior o nível educacional de uma população, mais produtiva ela tende a ser, o que eleva o potencial de crescimento da economia.

Já o contrário – como ocorre no Brasil – é uma evidência de atraso.

Mas, por trás desse atraso, há uma grande oportunidade.

Os 131% de ganho que um diploma universitário garante a quem o detém – em relação à conclusão do ensino médio – deveriam ser amplamente explicados e divulgados no país.

O mesmo deveria ocorrer com os 92,5% de retorno salarial extra que uma pós-graduação traz em relação ao ensino universitário no Brasil. Também em consequência do baixo número de profissionais que alcança essa formação no país, nosso percentual é o triplo da vantagem de 32% que um mestrado ou doutorado representa na média dos países da OCDE.

É preciso gritar para o jovem brasileiro essas vantagens, convencê-los de que essas são razões de sobra para não desistir, para ir o mais longe que puderem.

O país aumentou as oportunidades para que brasileiros invistam em educação. Mas é preciso fazer muito mais.

Como mostra um estudo feito pelo Banco Mundial, até a desinformação sobre o tema é gritante no Brasil.

Em uma pesquisa de campo feita para o relatório “Competências e Empregos: uma Agenda para a Juventude”, publicado em 2018, a instituição multilateral identificou que parte significativa dos brasileiros desconhece as vantagens de remuneração associadas a mais anos de estudo.

“Quando informados da renda média de um trabalhador com um certo nível educacional e perguntados quanto alguém com anos a mais de educação poderia ganhar naquele emprego, os brasileiros entrevistados pela pesquisa, em sua maioria, subestimaram o verdadeiro valor dos anos adicionais de escolaridade”, diz um trecho do estudo.

Quatro em cada dez entrevistados na época achavam que um trabalhador com ensino fundamental que ganhava, em média, R$ 1.226, tinha a mesma remuneração de um profissional com ensino médio completo.

Mas a vantagem salarial de quem termina o ciclo básico escolar é de 47% no Brasil, segundo os dados divulgados pela OCDE.

Embora o foco do relatório deste ano da organização tenha sido o ensino profissionalizante, o texto não traz dados sobre a diferença salarial entre quem escolhe essa rota e quem opta por cursar o ensino médio tradicional no Brasil.

Outras pesquisas já identificaram, no entanto, que a formação técnica também pode ser bastante vantajosa no país.

Esses dados também deveriam chegar aos jovens brasileiros, não só como incentivo para que não eles desistam da escola, mas para que façam escolhas bem embasadas sobre o seu futuro.

É claro que os problemas que alimentam a brutal evasão escolar no país são muitos e precisam ser, urgentemente, atacados.

Mas fazer com informações básicas cheguem à população é o mínimo que o país deveria conseguir.