domingo, 5 de julho de 2020

Pequeno grupo de empresas insensíveis causa dano terrível à sociedade, FSP

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André Sturm

Cineasta, ex-diretor do Museu da Imagem e do Som de São Paulo e ex-secretário da Cultura da cidade de São Paulo

Sou um empresário. Um empreendedor. Atuo na área cultural há mais de 30 anos. Meu negócio mais conhecido é o Cine Belas Artes.

Ao final de 2002, saiu a notícia de que o cinema fecharia. Procurei o dono e propus uma parceria. Convenci três amigos corajosos, que se associaram. Conseguimos o patrocínio de um banco e reformamos. Voltou a ser o cinema querido de todos, cheio de gente.

No final de 2010, o proprietário do imóvel informou que não pretendia renovar o contrato. Foi uma mobilização incrível, mas fechamos em março. Durante dois anos, mantivemos a chama acesa e, em 2013, a prefeitura se dispôs a ajudar, o proprietário aceitou conversar, veio novo contrato de patrocínio com outro banco.

Em julho de 2014, o cinema reabria suas portas. Tanta gente veio que a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) teve que fechar a rua da Consolação, em frente.

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André Sturm, ex-secretário da Cultura da cidade de São Paulo - Mathilde Missioneiro - 12.02.2020/Folhapress

No ano passado, perdemos o patrocínio, mas em 40 dias já tínhamos outro, garantindo o funcionamento.
Conto tudo isso para mostrar que já enfrentei as maiores dificuldades. Mas nunca imaginei passar o que ocorreu nos últimos meses.

Atendendo a pedido do governador, e, para preservar de riscos nossa equipe e público, fechamos o cinema em 17 de março. Dei férias para os funcionários e avisei que reabriríamos em 30 dias.

Em meados de abril, ficando claras a gravidade da situação e a total falta de perspectiva de reabertura, surgiu um impasse: são mais de 50 colaboradores. Todos em casa. Zero receita. Não existe “delivery” de cinema (o streaming é explorado por outras empresas) ou de pipoca.

Nunca em minha vida empresarial demiti um funcionário por “corte de custos”. Não queria fazer isso agora, ainda mais na grave crise. Mas a folha superava R$ 180 mil.

Foi quando surgiu uma luz.

O governo federal anunciou uma linha de financiamento com juros mínimos para essa necessidade das pequenas e médias empresas!

No mesmo dia, entrei em contato com a agência na qual temos conta. A gerente informou que não tinha notícias sobre tal linha. Todos os dias, uma ligação e a mesma resposta. Após alguns dias, ouvi que essa linha não funcionava, mas, se eu quisesse, o banco tinha um credito incrível para minha empresa.

Cobravam por mês quase a taxa anual do crédito federal! Como assim?

Na mesma semana, em todos os jornais, vejo um anúncio desse banco doando R$ 1 bilhão para o “combate à Covid-19”.

Muita hipocrisia. O melhor combate à doença é manter empregos. Permitir que as empresas sigam vivas, pagando seus funcionários. Que eles possam pagar suas contas, seu aluguel, comprar comida, roupas.

Por que não colocar esse dinheiro num fundo de aval e liberar recursos para o maior número de empresas garantindo que as mesmas se comprometessem a não demitir?

Tenho um amigo que simplesmente demitiu todos os funcionários, fechou o negócio e foi para casa pedir delivery de bons restaurantes. Disse-me que, quando acabar, verá como reabrir. Eu e milhares de outros empresários tentamos manter vivas empresas.

Não se trata de “ganhar” dinheiro (o que, para alguns, parece crime). Trata-se de cumprir a função social de uma empresa que é gerar riqueza para seus trabalhadores e sócios.

E o banco não liberava o crédito federal. Três semanas se passaram. Fui a outro banco tentar. Disse que levaria minha conta para lá. Nada.

Falei então com um amigo muito influente e pedi ajuda. Ele me disse que ligaria na direção do banco. No dia seguinte, a gerente ligou. Em 48 horas, eu tinha o crédito. Salvei os empregos de 50 pessoas.

Milhares de outros empresários, porém, que não têm um amigo influente, fecharam as portas, demitiram milhões de pessoas que terão suas vidas gravemente prejudicadas. Menor qualidade de vida, perda de autoestima, pior alimentação, pior moradia... mais chances de ficar doentes.

Estamos numa crise sem precedentes. Governos e empresas estão buscando como diminuir os danos à vida das pessoas, e quatro bancos represam BILHÕES que poderiam ser injetados na economia e salvar milhões de vidas.

Senti na pele essa cruel realidade. Fico feliz de a Folha me pedir este relato e que isso seja conhecido pela sociedade: o dano terrível causado por esse pequeno grupo de empresas insensíveis à população brasileira.​

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo

04 de julho de 2020 | 03h00

Circunscrito a um reduzido círculo de conhecimentos (infestado de ineptos, inaptos e bandidos) e à mercê das preferências de dois grupos de pressão superficialmente conflitantes – os militares e os olavistas – Bolsonaro continua fazendo as escolhas mais calamitosas inimagináveis. Além do dedo podre, repito, não tem quadros. 

A cada ministro ou secretário demitido, ninguém mais se pergunta “quem será o sucessor?”, mas “que outro estupor ele irá convidar?”. Um estrupício caitituado pela militância ou sugerido pela milicância, favorecido pela ala ideológica ou pela ala verde-oliva? Essa distinção em alas, aliás, é uma lereia. Por que só alas e não facções e grupelhos? Ala, só a das baianas; mais respeito com elas e o carnaval.

Deveria ter soado alvissareira a escolha do professor Carlos Alberto Decotelli. Não fora indicado pelos apparatchiks da ultradireita da Virginia, parecia homem sério, preparado e equilibrado, um antípoda do Weintraub. A negritude, até então apenas representada no governo por Hélio Negão, um Lothar sem Mandrake, noves fora o défroqué noir Sérgio Camargo, também contava a seu favor. Afinal seria o primeiro afrodescendente alçado a ministro da Educação desde a criação do ministério na República Nova. Acabou sendo, coitado, o único ministro da Educação demitido antes de tomar posse.

Mesmo convicto de que qualquer pessoa se desmoraliza ao aceitar integrar o atual governo, torci para Decotelli conseguir provar os doutorados e distinções que dizia ter. 

É que sua figura me trouxe à lembrança um professor de Latim do Colégio Pedro II, José Pompílio da Hora, sujeito preparadíssimo, também mestre em grego, filosofia e história, formado em direito pela Universidade de Nápoles, daí o leve sotaque italianado que nunca perdeu e lhe conferia um ar meio solene, quase pedante. 

Pompílio da Hora era negro e por duas vezes no início da década de 1950 teve sua entrada no Itamaraty frustrada pelo que então chamavam de “preconceito de cor”. Não guardou rancor, nem se entregou à autocomiseração. Esse episódio de racismo marcou minha adolescência, de maneira indelével, como se pode notar. 

Prof. Pompílio protegia descaradamente as meninas da turma, descascava os rapazes, e me fez decorar e traduzir, de castigo, os primeiros versos da Eneida (“Arma virumque cano...”, canto as armas e o varão), enquanto lubrificava a garganta com pastilhas Valda, seu único vício público. Pensei nele, no racismo do Itamaraty e só fui deixar de torcer pelo ministro Porcina (aquele que foi sem nunca ter sido) ao assistir àquela fatídica entrevista que ele deu à Globo News no início da semana. 

Achei-o antipático, presunçoso, pernóstico e enrolador. Cheguei a desconfiar que a mídia o estivesse tratando com mais rigor que o dispensado aos cascateiros brancos do governo (Ricardo “Yale” Salles, Damares, o próprio Weintraub), com seus turbinados currículos acadêmicos, mas, em vez de ficar ruminando sobre um eventual viés racista da imprensa (e da Fundação Getúlio Vargas) em relação a Decotelli, preferi assuntar a presença dos negros na carreira diplomática e o comportamento deplorável de antigos ministros da Educação.

Nosso primeiro embaixador negro, Raimundo Sousa Dantas, foi uma ousada invenção de Jânio Quadros. Sua nomeação para representar o Brasil em Gana (África), em 1961, gerou resistência entre diplomatas e intelectuais brasileiros. Se hoje ainda só temos 5% de negros na carrière, assim mesmo graças a uma política de cotas e bolsas de estudos relativamente recente, imagine 60 anos atrás. Hoje Pompílio da Hora seria até embaixador, como Jackson Luiz Lima Oliveira, que já nos representou em Zâmbia e na Nigéria, e conhece a fundo a influência do racismo estrutural no Itamaraty.

Como teria sido Decotelli à frente da Educação é curiosidade que jamais será satisfeita. Pior do que seus dois antecessores (Ricardo Vélez Rodriguez e Abraham Weintraub) não seria, mas não consigo imaginá-lo ao nível do que Ney Braga e Eduardo Portella, sobretudo o segundo, conseguiram ser no governo Geisel. 

É possível entender as razões do estado deplorável do ensino, e não só do ensino, no Brasil pela trajetória dos que assumiram o ministério da Educação desde sua criação em 1930. Seu primeiro ocupante, Francisco Campos, foi quem redigiu, em 1937, a Constituição do Estado Novo e, em 1964, os dois primeiros atos institucionais da ditadura militar. 

Em 20 anos de ditadura, tivemos 10 ministros da Educação e dois interinos, nenhum naturalizado (como o colombiano Vélez), nem palhaço (como Weintraub), uns mais, outros menos afinados com os “ideais revolucionários” do regime. Os quatro primeiros (Luiz Antônio da Gama e Silva, Flávio Suplicy de Lacerda, Moniz de Aragão e Tarso Dutra) foram de lascar. 

Gama e Silva ganhou o cargo pela limpeza ideológica que fizera, quando reitor da USP, banindo de seu corpo docente os professores Florestan Fernandes, Mario Schenberg, Octavio Ianni, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso e outros “esquerdistas”. Quatro anos depois poria sua sapiência jurídica a serviço da redação do AI-5. 

Suplicy de Lacerda notabilizou-se por um acordo de cooperação do MEC com a Agência de Desenvolvimento dos EUA (Usaid), que visava transformar o ensino brasileiro num projeto tecnocrático e foi levado adiante por Tarso Dutra, que pegou pela proa as revoltas estudantis de 1967-69, motor e flecha da Passeata dos 100 Mil e outras decisivas manifestações de repúdio à ditadura. Por ser jurista, como Gama e Silva, encarregaram-no de revisar o texto do AI-5.

Não podia dar muito certo um ministério historicamente mais preocupado com a repressão do que com a educação. 

sábado, 4 de julho de 2020

Os desbancarizados, Celso Ming, O Estado de S.Paulo


03 de julho de 2020 | 19h25

Há os sem-emprego, há os sem-teto e há os sem-banco, os desbancarizados. Para esses, além de ter de lidar com dinheiro vivo para tudo, fica mais difícil receber e transferir recursos, uma exigência cada vez maior nestes tempos de modernidade.

Os pagamentos do Auxílio Emergencial, feitos desde abril pelo governo federal para socorrer a população de baixa ou nenhuma renda durante a pandemia, escancararam os problemas da falta de bancarização no Brasil. Para receber o auxílio na Caixa Econômica Federal foram realizados 7 milhões de saques em espécie. Para isso, as pessoas tiveram de encarar longas filas na rua, quando deveriam ficar em casa para se proteger do vírus.

Os bancos não fazem muita questão de manter abertas contas correntes ou contas de poupança com baixos saldos e com pouca movimentação. Cobram tarifas altas demais para pequenos correntistas e seguem fechando agências bancárias. Só nos 4 últimos anos, foram 3 mil no Brasil.

Um estudo realizado em 2017 pelo Banco Mundial em 140 países, entre os quais o Brasil, mostrou que o correntista encara com desconfiança os serviços dos bancos. A burocracia para abrir uma conta corrente é vista com antipatia ou, por força do hábito, parece mais fácil lidar com o velho dinheiro vivo. 

Pessoas mais antenadas podem afirmar que estão disponíveis soluções gratuitas e digitais das fintechs (as startups financeiras), mas estas ainda não saíram da bolha das metrópoles, onde a população é mais bem educada e desfruta de renda mais alta.

Mas bancarização é um conceito em busca de consenso. O setor bancário não acha que este seja problema grave. Entende que o índice de bancarização no Brasil não é muito diferente do existente no resto do mundo. Especialista em Sistema Financeiro, o economista Roberto Luís Troster observa que a digitalização abriu facilidades. Basta ir a uma lotérica ou caixa de supermercado, ter cartão de crédito, abrir uma conta de pagamento de uma fintech ou, em futuro já próximo, possuir um aplicativo de mensagem que realize transferências, para que uma pessoa desfrute de algum grau de bancarização.

Caixa
Caixa Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Banco Central calcula que 148 milhões de brasileiros adultos mantêm alguma forma de relacionamento bancário. Mas pesquisa do Instituto Locomotiva de junho de 2019 verificou que 45 milhões de brasileiros não movimentaram conta corrente ou poupança durante seis meses.

Esses dados, reconhece Renato Meirelles, presidente do Locomotiva, devem ter envelhecido. “Se é verdade que a pandemia escancarou a desbancarização, por outro lado acelerou a digitalização financeira. Mas o desafio não é aumentar os bancarizados, e sim fidelizá-los”, explica.

Quem pode ganhar vantagem na conquista da população de baixa renda são as fintechs, que propõem soluções com poucos toques na tela do celular. Mas, até o período pré-covid-19, elas caminhavam devagar. Novas opções ficaram disponíveis a partir da necessidade que as pessoas passaram a ter de receber e fazer pagamentos antes feitos somente em espécie. “O consumidor de baixa renda só vai recorrer às fintechs se elas demonstrarem que o uso do dinheiro digital vale mais a pena do que a manipulação de notas”, diz. Medidas como cashback (pequeno estorno do valor da compra) e sistema de recompensas (como programas de milhagens) podem ser boas soluções para quem consegue pechinchas com papel-moeda em mãos.

A iniciativa do WhatsAppno momento bloqueada pelo Banco Central, deverá facilitar pagamentos e, assim, poderá aumentar a digitalização dos serviços financeiros. Meirelles observa que, pela alta capilaridade deste aplicativo, seria a melhor solução para a população de baixa renda, acostumada a recorrer, na base da confiança, a empréstimos de amigos ou parentes. A proposta do WhatsApp seria uma forma de registrar um acordo, cravar a quantia combinada e facilitar transferências de grandes volumes, sem ter de sair de uma agência bancária com maços de papel-moeda nos bolsos.

O WhatsApp não lidera essa corrida. Outros pretendentes disputam o mesmo consumidor. O Picpay, por exemplo, é uma fintech que formou parceria com o governo do Estado de São Paulo para transferir o dinheiro da merenda para famílias de baixa renda enquanto as aulas estiverem suspensas. Concorrentes como Iti, PagSeguro e Mercado Pago também estão nesse segmento, que promete competir com os bancos na faixa das carteiras digitais. / COM GUILHERME GUERRA