quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Juca Kfouri :O Flamengo é o Brasil, sim!, FSP

Finalmente será verdade que um time é o país. Não pela torcida, mas pelo futebol

O futebol brasileiro precisa do triunfo do Flamengo na final da Libertadores contra o forte River Plate.
Se há quem diga ter sido a derrota para a Itália em 1982, na Copa do Mundo na Espanha, o golpe que mudou nossa forma de jogar, e por coincidência num momento de soberania rubro-negra, oito meses antes campeão mundial ao derrotar o Liverpool por 3 a 0, a vitória agora poderá significar a retomada de um estilo.
Estilo imposto por brasileiros como Gerson e Bruno Henrique, aliados da coragem do português Jorge Jesus.
Diferentemente da semifinal portenha, a brasileira teve qualidade.
Qualidade, coragem e gols.
Gabriel comemora o primeiro de seus dois gols sobre o Flamengo, no Maracanã, em duelo pela semifinal da Libertadores
Gabriel comemora o primeiro de seus dois gols sobre o Flamengo, no Maracanã, em duelo pela semifinal da Libertadores - Pilar Olivares/Reuters
Depois de primeiro tempo equilibrado, mas com superioridade rubro-negra, o 1 a 0 no fim, mais uma vez com Bruno Henrique, deu tamanho gás ao Flamengo que o segundo tempo começou impiedoso, com dois gols em menos de dez minutos, o segundo com menos de um minuto, ambos do Gabigol.
Daí em diante, só festa, com o 4 a 0 por Pablo Mari, com o 5 a 0 de Rodrigo Caio, dava até pena do Grêmio.
Uma goleada era tudo que não se esperava, mas o Flamengo tem essa qualidade rara por aqui, e tão comum na Inglaterra do Liverpool e do Manchester City, a de não se contentar com a vitória magra.
O clube da Gávea, além de não poupar ninguém, arriscou ao botar De Arrascaeta e Rafinha no jogo, porque é assim mesmo, jogo grande é para ir com tudo.
Caberá ao Flamengo vencer não apenas o entrosado time do River Plate, que bem poderia ser chamado Fênix Plate, alusão ao pássaro mitológico que renasce das cinzas, duas vezes campeão continental depois de 2012, quando disputou a segunda divisão argentina.
Haverá de superar ainda o coração platino, como se viu no mau espetáculo da Bombonera, quando o time do também mitológico Marcelo Gallardo abandonou seu estilo de ficar com a bola, triangular, se movimentar com intensidade, para jogar recuado e até recorrer à velha milonga, à catimba que parecia enterrada.
Apenas por sorte a decisão da vaga não acabou na marca do pênalti, porque mesmo abusando das ligações diretas e da bola aérea, o Boca Juniors fez por merecer o 2 a 0 que empataria tudo.
Não fosse o milagre de Armani, ao evitar gol contra de Pérez ao fim do primeiro tempo, a grossura de Ábila e a impotência de Carlitos Tevez, talvez os Milionários não pudessem lutar pelo pentacampeonato continental.
A final está marcada para 23 de novembro, um sábado, em Santiago, se o Chile neoliberal sobreviver até lá.
Campo neutro como aconteceu na única vez em que o Flamengo ganhou a taça, em 1981, contra o Cobreloa chileno, em Montevidéu, mas como terceiro jogo, o do desempate.
A final deste ano, em inédito jogo único, será muito mais nobre, contra outro gigante mundial.
Será também 15ª decisão entre brasileiros e argentinos, com vantagem deles por 9 a 5, embora nas últimas duas finais, em 2012 e 2017, os vencedores tenham sido o Corinthians, contra o Boca Juniors, e o Grêmio contra o Lanús.
O Mister Jesus terá pela frente o mito Muñeco, Boneco, Gallardo, que está para o River assim como Telê Santana para o São Paulo ou Tite para o Corinthians ou Renato Portaluppi para o Grêmio.
Vencê-lo igualará Jorge Jesus a todos eles.
Porque o River vai "jugar a morir".
Que o Flamengo jogue para ressuscitar o alegre futebol brasileiro.
Juca Kfouri
Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.

O preço da desigualdade, Laura Carvalho, FSP

Artigos relacionam crescimento da extrema direita com ansiedade econômica

Em pesquisa realizada com um painel de renomados economistas europeus, a Initiative on Global Markets (IGM) da Universidade de Chicago encontrou que apenas 2% dos participantes discordam da afirmação de que “o aumento da desigualdade está prejudicando a saúde da democracia liberal”, e apenas 7% rejeitam a ideia de que “políticas e gastos redistributivos provavelmente limitariam o crescimento do populismo”.
De fato, a identificação da desigualdade e da ansiedade econômica como elementos centrais para o crescimento da extrema direita no mundo vem ganhando cada vez mais espaço na literatura. 
Em artigo aceito pela American Economic Review, Thiemo Fetzer demonstrou que o corte de programas sociais no Reino Unido desde 2010 aumentou o apoio ao brexit.
Em estudo de 2017 sobre a inclusão de imigrantes em um programa de habitação social na Áustria, Charlotte Cavaille e Jeremy Ferwerda já haviam sugerido que o maior conflito distributivo sobre a provisão de bens públicos aumenta o desempenho de partidos de extrema direita.
Estudos econométricos feitos para os EUA e diversos países da Europa apontam, ainda, que a exposição a produtos importados chineses tende a beneficiar candidatos não moderados, reforçando o papel da globalização para esses fenômenos. Essa última também está na raiz do declínio da classe média identificado por Branko Milanovic em seu livro “Global Inequality” como catalisador da recessão democrática global.
Ao tentar compreender como choques distintos de globalização poderiam levar ao crescimento do populismo de direita, ou de esquerda, a depender do tipo de divisão na sociedade explorado pelos políticos, Dani Rodrik propôs a seguinte hipótese. De um lado, a liberalização comercial e a imigração favoreceriam a ênfase nas divisões identitárias, que marcam o populismo cultural de direita observado nos EUA e na Europa.
De outro, a liberalização financeira fortaleceria divisões de renda, o que explicaria o maior peso do populismo econômico de esquerda no Sul da Europa e na América Latina.
Nesse sentido, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 pode ter vindo como uma surpresa.
Afinal, assim como outros países da América Latina, o Brasil beneficiou-se do processo do crescimento chinês nos anos 2000 —por meio da valorização do preço das commodities— e expandiu políticas redistributivas para a base da pirâmide.
Mas, como sabemos, além de não termos conseguido evitar a perda de empregos industriais em meio à alta competitividade dos asiáticos, o fim desse ciclo nos levou a convergir para os conflitos distributivos crescentes, a austeridade e o aumento da desigualdade que já assolava os países ricos.
Em vez de culpar os imigrantes ou a China pelo aumento da insegurança econômica, a plataforma eleitoral de Jair Bolsonaro aproveitou-se da percepção já estabelecida em meio aos escândalos da Operação Laja Jato de que a corrupção era a própria causa da crise.
O inimigo a ser combatido era, portanto, o establishment do sistema político e a esquerda, em particular. 
Não à toa, ao contrário de Donald Trump, do brexit ou de Viktor Orbán na Hungria, Bolsonaro uniu ao conservadorismo moral típico desses movimentos uma agenda ultraliberal na economia: livrar-se de um Estado corrupto em todas as áreas (que não a segurança pública) seria também a solução para a crise.
O acúmulo de frustrações da população em meio às sucessivas promessas de retomada, que passaram do impeachment de Dilma Rousseff, ao teto de gastos e reforma trabalhista de Michel Temer, à reforma da Previdência aprovada na terça (22), contribuiu para essa aposta. Nas mais de 200 colunas publicadas nesse espaço desde 2015, não se viram promessas desse tipo.
Aproveito para me despedir do jornal com um agradecimento especial aos leitores que também torcem e trabalham por dias melhores, de uma economia a serviço da sociedade democrática.
Laura Carvalho
Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".