quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Forças externas, Pablo Ortellado FSP

Oposição recusa a autocrítica e insiste em atribuir a vitória de Bolsonaro a superpoderes externos

O discurso político da oposição foi tomado por diagnósticos sobre a ascensão de Bolsonaro que superdimensionam os fatores externos. Mesmo sendo pouco críveis, essas explicações se tornaram as interpretações dominantes sobre o sucesso da nova direita.
Embora diferentes entre si, têm em comum o fato de atribuir o sucesso eleitoral do presidente a superpoderes ou a violações das regras do jogo que desorganizariam a ordem natural das coisas, isto é, o sucesso eleitoral da esquerda. 
Elas podem reivindicar superpoderes tecnológicos, como a alegação de que foi uma atuação clandestina da Cambridge Analytica ou disparos em massa de WhatAspp que desestabilizaram a eleição presidencial.
Não há nenhum indício de que a Cambridge Analytica ou alguma das empresas que a sucederam tenham atuado no Brasil. Além disso, há grande descrença entre especialistas na real efetividade do modelo de anúncios segmentados com base em perfis psicológicos. Finalmente, o modelo empregado nas eleições americanas não pode ser reproduzido fora do Facebook —e os gastos com publicidade eleitoral no Facebook são públicos e foram muito reduzidos.
0
Bolsonaro e a mulher, Michelle, na cerimônia de posse - Pedro Ladeira - 1º.jan.2019/Folhapress
A mesma coisa se pode dizer dos disparos de WhatsApp. Embora o esclarecimento sobre seu uso nas eleições tenha implicações para a justiça, por ser ilegal, é bem pouco provável que o expediente tenha tido um efeito eleitoral relevante, seja porque spam no WhatsApp é caro e ineficaz, seja porque amostras desse tipo de propaganda recolhidas por pesquisadores não mostraram nenhum conteúdo bombástico que pudesse virar o jogo.
Restam ainda as explicações sobre violações nas regras do jogo eleitoral, como o fato de que foi a desinformação que garantiu a vitória a Bolsonaro ou ainda a ridícula tese de que Bolsonaro forjou a facada para gerar simpatia e se afastar dos debates.
Embora desinformação tenha seguramente circulado em grande quantidade no WhatsApp e pesquisas de opinião tenham mostrado o seu alcance, pouco sabemos sobre sua capacidade de mudar votos e nada indica que aquelas que foram propagadas pela direita tenham tido mais efetividade do que as que foram propagadas pela esquerda. 
Em vez de insistir em explicações conspiratórias que atribuem a vitória de Bolsonaro a fatores excepcionais externos, a oposição faria melhor se aproveitasse esse recesso fora do poder para refletir sobre os seus erros, assim como sobre os acertos da nova direita que conseguiu se conectar com a população e jogá-la contra uma esquerda apresentada como corrupta, inepta e elitista.
 
Pablo Ortellado
Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

Lei delegada, Antonio Delfim Netto, FSP

Brasil precisa de medidas expeditas para alcançar seus objetivos

A sociedade está dividida, politicamente, entre uma "direita" truculenta, reacionária em costumes, que despreza o conhecimento empírico e se agarra a um misticismo religioso primitivo, e uma "esquerda" que perdeu a sua inteligência e, portanto, é incapaz de entender o que lhe aconteceu e de propor novas ideias que se submetam a um mínimo de lógica (por exemplo, que a soma das partes não pode ser maior do que o todo). Enquanto isso, a tribo dos economistas que está sempre em conflagração interna tem o mesmo diagnóstico para a doença que debilita a economia brasileira: a deficiência de demanda efetiva.
Por que isso surpreende? Porque, felizmente, os economistas dividem-se em várias igrejas, com diferentes visões de mundo, mas todas sujeitas ao controle empírico. É essa abertura de "horizonte" que autoriza o mesmo diagnóstico da doença sugerir remédios alternativos para a sua cura. 
As formas de aumentar a demanda efetiva dependem, obviamente, das "condições de pressão e temperatura" em que se encontram as finanças públicas da União e dos entes federados. Se não correm o risco de insolvência, e se os agentes têm expectativas benignas, basta aplicar a vulgata da contrafacção do keynesianismo "hidráulico": emitir e financiar projetos que ficam pelo caminho e, principalmente, gastos correntes, o que fazemos há anos.
O ministro da Economia, Paulo Guedes - Amanda Perobelli/Reuters
Mas, se o Estado está em processo falimentar, que é o nosso caso, não resta outro caminho que não seja um hígido aumento da demanda efetiva pela ampliação da oferta: investimentos em bons projetos de infraestrutura financiados pelo setor privado nacional e estrangeiro. À medida que forem executados, irão elevando a demanda efetiva. É conveniente acompanhá-los por uma aceleração das privatizações e, com seus resultados, reduzir a dívida pública. Estas sugestões não são resultado da ideologia que supõe um sistema econômico sem Estado, ou crê que este só exista para suprir as "falhas de mercado" na provisão de bens públicos. Ao contrário, o Estado é um agente regulador ativo, e a "economia pública" é parte orgânica do bom funcionamento dos mercados.
Nosso grave problema é como criar mecanismos para acelerar os leilões de algumas dúzias de projetos de infraestrutura, as parcerias público-privadas e as privatizações. Não há nem interna, nem externamente, restrições para financiá-los, porque têm altas taxas de retorno num mundo complicado e com taxas de juros reais negativas.
O Brasil precisa aprovar no Congresso uma boa Lei Delegada (Art. 68 da Constituição de 1988), que torne expeditas as medidas necessárias para realizar esses objetivos.
 
Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.

Abolidos por obsoletos, Ruy Castro ,FSP

A nova cesta básica do brasileiro incluirá de streaming a serviço de sobrancelha

O IBGE se prepara para atualizar o cálculo do IPCA, índice oficial de inflação, pelos novos dados fornecidos pela POF (Pesquisa de Orçamento Familiar). Eles medem tudo que consumimos. O bom desse acompanhamento, feito há décadas, é que ele permitiu montar a cesta básica do brasileiro em cada período, com o que podemos acompanhar o desenvolvimento do país.
Em 1950, por exemplo, os dados levavam em conta nossos gastos com o feijão, o ônibus, o cigarro, o lápis do caçula, a ida semanal ao cinema e, talvez, uma fezinha no bicho. Éramos um país simples, mas feliz, segundo os antigos. Em 1970, com a modernização, o cálculo trocou alguns daqueles itens pelo estrogonofe, o carro do ano, as escapadas aos motéis, a TV em cores e as aplicações na Bolsa. Essas opções nos conduziram, respectivamente, ao colesterol, à angústia, ao desquite, ao emburrecimento e à falência, mas fomos levando.
Em 1990, a cesta básica incluía quilos de cocaína, estoques de camisinha, pizza pelo telefone, férias em Cancun e aplicações no overnight --um esquema de investimento em que você pensava que o seu dinheiro dobrava enquanto você dormia, embora ele só estivesse se defendendo da inflação de 1.000% ao ano. Em 2010, o cálculo passou a considerar as despesas com TV a cabo, curso de mandarim, cirurgia bariátrica, passeador de cachorro, aplicação de botox e propina de deputado. 
Para o próximo ano, o IBGE vai ampliar o espectro e pesquisar nossos gastos com streaming, branqueamento dentário, aluguel de bicicleta, conserto de celular e serviços de sobrancelha e depilação. Infelizmente, alguns itens serão abolidos da análise por obsoletos: aparelhos de rádio, relógios, máquinas fotográficas, CDs, DVDs. 
Não por mim. Minha cesta básica continuará incluindo vários itens condenados e que ainda me servem muito bem. Aboli-los seria como eu próprio me abolir como obsoleto.
Ilustração de rádio antigo - Carvall
Ruy Castro