segunda-feira, 4 de março de 2019

OPINIÃO RICARDO SEITENFUS O crepúsculo dos Deuses, FSP

Fracasso no Haiti serve de exemplo para a Venezuela

Ricardo Seitenfus
Após mais de três décadas de crises, o Haiti prossegue em sua via-crúcis. Oito missões de paz equivocadamente impostas pelo Conselho de Segurança da ONU, dezenas de intervenções de variada natureza dos autodenominados “países amigos”, mais de US$ 30 bilhões gastos em múltiplas operações, 50 mil mortos e 800 mil infectados pela cólera levada ao país pelas forças militares a serviço das Nações Unidas, a sucessão de furacões devastadores e um terremoto que vitimou mais de 230 mil pessoas.
Hoje, 60% da população vive na pobreza absoluta, sem acesso à eletricidade, à água, à educação e aos serviços básicos de saúde. A grande maioria desses pobres são, de fato, miseráveis, dominados por uma única e exclusiva tarefa: sobreviver.
O atual presidente Jovenel Moïse, guindado ao poder por apenas 10% dos eleitores, apadrinhado de Michel Martelly —o artista-palhaço de extrema direita imposto por Hillary Clinton em 2011, desrespeitando o resultado das urnas— é contestado em razão da ineficácia governamental e da corrupção que gangrena sua administração.
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Vítima das barricadas, cai, em julho de 2018, o então primeiro-ministro, Jack Guy Lafontant. Seu substituto, Jean Henry Céant, encontra-se na corda bamba e deverá ser a próxima vítima, pois no regime político misto seu cargo é, antes de tudo, utilizado como fusível para preservar o presidente. 
A intrincada situação foi agravada com a ação de mercenários estrangeiros —veteranos militares dos Estados Unidos— presos com armas de guerra em Porto Príncipe. Acusados por Céant de preparar seu assassinato, eles foram liberados pelo presidente e retornaram livremente para Miami.
Tanto essa conjuntura extraordinária como a recorrência dos descalabros estruturais são objeto de um silêncio ensurdecedor. De todos. Inclusive da grande mídia internacional.
Fiéis ao adágio de que uma nova crise expulsa a anterior, os olhares voltam-se para Caracas e seu Maduro, presidente-bufão. Não obstante há um estreito vínculo entre os dois colapsos. Uma das razões essenciais da revolta popular no Haiti decorre do desvio de US$ 3,8 bilhões do fundo Petrocaribe, bancado exclusivamente pela Venezuela por meio de sua desastrada diplomacia petrolífera. Trata-se do maior escândalo de corrupção da história do Haiti. Esfumaçado o impressionante montante, ninguém nem sequer foi processado.
O fracasso da intervenção no Haiti deveria aconselhar prudência e cautela no tratamento da crise venezuelana. Todavia é exatamente o contrário que ocorre. Ouvem-se o rufar dos tambores de guerra e a cacofonia de declarações estapafúrdias.
A ajuda humanitária se transforma em apêndice do exercício do poder pelos mais fortes com o desrespeito dos princípios de imparcialidade, neutralidade e independência. Não é por outra razão que a Cruz Vermelha na Colômbia e no Brasil se recusa a participar da entrega de assistência supostamente humanitária para a Venezuela.
Rudimentos diplomáticos e dispositivos constitucionais como o da não intervenção nos assuntos domésticos dos Estados são estouvadamente jogados no lixo da história em nome de uma suposta missão inspirada por Deus. Há que desconfiar —sempre e em qualquer circunstância— quando homens detentores de mando evocam divindades para justificar suas ações.
Como sublinha um crítico do filme “Sunset Boulevard,” que empresta seu título em português a este artigo, o mundo vive uma quadra “amarga, triste, desoladora, desesperançada, desesperadora, trágica demais”. Prosseguem imperando, como constatava o filósofo Amiel em meados do século 19, a hipocrisia, a má-fé e a tolice.
Ricardo Seitenfus
Ex-representante especial da OEA no Haiti (2009-2011), professor aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e doutor em relações internacionais pela Universidade de Genebra

Luiz Weber O general dublador, FSP

Mourão é o “closed caption” de Bolsonaro. Se o presidente fala e a declaração cai mal no mercado financeiro ou na política, o vice é acionado pela estrutura militar do Planalto para legendar o pensamento presidencial.
Na sexta-feira (1º), assessores palacianos se viram obrigados a teclar o botão CC para traduzir uma fala do presidente considerada desastrosa sobre a reforma da Previdência.
No dia anterior, durante entrevista realizada em ambiente de estufa, Bolsonaro admitiu que a idade mínima de aposentadoria das mulheres poderá ser revista.
Até então, o foco do Congresso estava nos “bodes na sala” —o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que é pago a idosos pobres e a pessoas com deficiência, e a aposentadoria rural. Bolsonaro abriu, de graça, nova frente de batalha.
“O presidente foi mal interpretado”, socorreu o general Mourão. Acontece que mesmo os melhores aparelhos digitais apresentam certo “delay” entre a fala e a transcrição. No lapso entre a declaração e a correção, a bolsa especulou e a miúda base parlamentar desarrumou-se ainda mais.
Parte do poder presidencial vem de sua caneta. Mas componente tão importante quanto mandar e desmandar é a capacidade de persuasão, de transmitir uma visão de mundo que os destinatários (deputados e senadores) se sintam à vontade em compartilhar.
A questão previdenciária precisa de um presidente persuasivo. Bolsonaro terá que se fazer compreender pela sua própria voz. Não será com mais hashtags que o governo conseguirá a aprovação da reforma.
Como intérprete presidencial, Mourão pode até continuar dublando o bolsonarês para o português falado no mercado e na política. Mas há o risco de cair na armadilha da tradução. Todo tradutor é um pouco traidor ao inocular no texto sua própria visão de mundo. Por mais sensatas que sejam até agora as declarações do vice, uma dupla voz vinda do Planalto só cria mais ruído.
Luiz Weber
Secretário de Redação da Sucursal de Brasília, especialista em direito constitucional e mestre em ciência política.