Fracasso no Haiti serve de exemplo para a Venezuela
Ricardo Seitenfus
Após mais de três décadas de crises, o Haiti prossegue em sua via-crúcis. Oito missões de paz equivocadamente impostas pelo Conselho de Segurança da ONU, dezenas de intervenções de variada natureza dos autodenominados “países amigos”, mais de US$ 30 bilhões gastos em múltiplas operações, 50 mil mortos e 800 mil infectados pela cólera levada ao país pelas forças militares a serviço das Nações Unidas, a sucessão de furacões devastadores e um terremoto que vitimou mais de 230 mil pessoas.
Hoje, 60% da população vive na pobreza absoluta, sem acesso à eletricidade, à água, à educação e aos serviços básicos de saúde. A grande maioria desses pobres são, de fato, miseráveis, dominados por uma única e exclusiva tarefa: sobreviver.
O atual presidente Jovenel Moïse, guindado ao poder por apenas 10% dos eleitores, apadrinhado de Michel Martelly —o artista-palhaço de extrema direita imposto por Hillary Clinton em 2011, desrespeitando o resultado das urnas— é contestado em razão da ineficácia governamental e da corrupção que gangrena sua administração.
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Vítima das barricadas, cai, em julho de 2018, o então primeiro-ministro, Jack Guy Lafontant. Seu substituto, Jean Henry Céant, encontra-se na corda bamba e deverá ser a próxima vítima, pois no regime político misto seu cargo é, antes de tudo, utilizado como fusível para preservar o presidente.
A intrincada situação foi agravada com a ação de mercenários estrangeiros —veteranos militares dos Estados Unidos— presos com armas de guerra em Porto Príncipe. Acusados por Céant de preparar seu assassinato, eles foram liberados pelo presidente e retornaram livremente para Miami.
Tanto essa conjuntura extraordinária como a recorrência dos descalabros estruturais são objeto de um silêncio ensurdecedor. De todos. Inclusive da grande mídia internacional.
Tanto essa conjuntura extraordinária como a recorrência dos descalabros estruturais são objeto de um silêncio ensurdecedor. De todos. Inclusive da grande mídia internacional.
Fiéis ao adágio de que uma nova crise expulsa a anterior, os olhares voltam-se para Caracas e seu Maduro, presidente-bufão. Não obstante há um estreito vínculo entre os dois colapsos. Uma das razões essenciais da revolta popular no Haiti decorre do desvio de US$ 3,8 bilhões do fundo Petrocaribe, bancado exclusivamente pela Venezuela por meio de sua desastrada diplomacia petrolífera. Trata-se do maior escândalo de corrupção da história do Haiti. Esfumaçado o impressionante montante, ninguém nem sequer foi processado.
O fracasso da intervenção no Haiti deveria aconselhar prudência e cautela no tratamento da crise venezuelana. Todavia é exatamente o contrário que ocorre. Ouvem-se o rufar dos tambores de guerra e a cacofonia de declarações estapafúrdias.
A ajuda humanitária se transforma em apêndice do exercício do poder pelos mais fortes com o desrespeito dos princípios de imparcialidade, neutralidade e independência. Não é por outra razão que a Cruz Vermelha na Colômbia e no Brasil se recusa a participar da entrega de assistência supostamente humanitária para a Venezuela.
Rudimentos diplomáticos e dispositivos constitucionais como o da não intervenção nos assuntos domésticos dos Estados são estouvadamente jogados no lixo da história em nome de uma suposta missão inspirada por Deus. Há que desconfiar —sempre e em qualquer circunstância— quando homens detentores de mando evocam divindades para justificar suas ações.
Como sublinha um crítico do filme “Sunset Boulevard,” que empresta seu título em português a este artigo, o mundo vive uma quadra “amarga, triste, desoladora, desesperançada, desesperadora, trágica demais”. Prosseguem imperando, como constatava o filósofo Amiel em meados do século 19, a hipocrisia, a má-fé e a tolice.
Ricardo Seitenfus
Ex-representante especial da OEA no Haiti (2009-2011), professor aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e doutor em relações internacionais pela Universidade de Genebra
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